Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Diabólica delação. Uma tautologia ameaçadora.

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Foto: ReproduçãoManda a prudência: antes de empregar um meio de controle social – político, econômico, jurídico – é preciso conhecer sua gênese, perfeições ou fraquezas. Nas “delações premiadas”, frutos de nada santas inquisições, tais cautelas são esquecidas. O prisioneiro, para escapar dos autos de fé estrelados por juízes,  promotores e policiais que deveriam ser neutros, confessa atos e palavras pouco submetidos ao controle fático e subjetivo. Deixam de ser revistos motivos trazidos pelas paixões mais baixas. Afetos negativos são velhos como a humanidade. E sua análise recolhe milhares de anos.  Não por acaso, nas falas religiosas, o agente de ódio e desunião chama-se Diabo, o turbulento delator. Ele agiu em Atenas, Roma, na inquisição (o terrível Monitório exigindo a delação geral, pelo inquisidor português Dom Diogo da Silva, em 1536), sob o absolutismo (Lacôte-Fernades, H. Les procès du cardinal de Richelieu, 2010), nos regimes totalitários. As ditaduras brasileiras nele tiveram um auxiliar polivalente. 

Volumes imensos acolhem o exame de vergonhosas práticas na ordem política. A história infame define culturas, Estados, credos conflitantes. No arsenal de baixezas dois itens merecem maior cautela, a calúnia e a delação. Para a denúncia caluniosa, vale retomar a Apologia de Sócrates (19a – 19 b). A peça acusatória (Diabolé) incrimina o filósofo por suposta sofística. O pensador transformaria argumentos fracos em fortes, no mesmo passo em que investigava os entes subterrâneos e celestes. Na acusação temos o ensaio de caçadas milenares contra a pesquisa científica. O termo usado para ferir Sócrates refere-se à Zetesis a busca dos fenômenos naturais ou históricos. A acusação une-se à calúnia segundo a qual o réu corrompe a juventude de Atenas, ensinando a impiedade. Exílio ou cicuta, a sentença já agia no indicador endurecido de Meletos. Denúncia e calúnia, faces do mesmo comportamento.

Platão cita vários exemplos de fala caluniosa. Na República (489d) é indicado o ultraje contra os praticantes da filosofia. Segundo a acusação (Diabolé), quem se dedica àquele estudo é  pervertido ou inútil. A própria filosofia pode ser caluniada se o praticante se mostra dela indigno (Carta 7, 329b).  O filósofo diferencia testemunho, denúncia,  calúnia (Leis, 937 a – e). No Estado a ser instituído segundo a justiça “se alguém for pego multiplicando processos indevidamente (...), qualquer um pode indigitá-lo por procedimento perverso ou ajuda em procedimento perverso. Ele será julgado pela Corte Superior”. Se culpado, “deve-se ver se agiu por avareza ou ambição de glória. Se estrangeiro, na recidiva será banido. No caso de um cidadão, morto”.  A pena capital é antídoto contra a pletora de processos e delações que infernizam a vida coletiva. Platão recorda as peças de Aristófanes, sobretudo As Vespas. Nela, os querelantes e suas picadas fazem inchar a cidade com chicanas que visam alvos financeiros ou políticos. Em tal ambiente, o sicofanta tem seu berço esplêndido. Aristófanes persegue os defeitos individuais e coletivos fazendo o povo gargalhar. Platão conduz ao ridículo as atitudes consideradas por ele como nocivas. (O’Gorman, Diderot the satirist, mas também   David Bouvier : “Platon et les poètes : peut-on rire de Socrate?” in Desclos, M.L. Ed. Le rire des Grecs, anthropologie du rire en Grèce ancienne).

Um escritor satírico conhecido é Luciano de Samósata. Seus textos oferecem o arsenal contra a tolice e a miséria humana, em estilo diáfano que marcou a cultura renascentista e moderna.  Basta pensar no quanto Erasmo, Rabelais, Tomás Morus. Denis Diderot dele se nutriram. Obras como O Elogio da Loucura e O Sobrinho de Rameau seriam impensáveis sem Luciano. (J. L. Brandão : A poética do hipocentauro - Literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata  Editora UFMG e  R. Romano, Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot, Ed. Unicamp).

Uma peça candente de Luciano tem o seguinte título: Sobre a Delação (Diabolé) que não se deve nela acreditar de modo apressado, traduzido para o latim por Guarino de Verona no inicio dos 400 (Calumniae non temere credendum).  O editor mais recente de Oxford afirma ser o texto “pura retórica”. Mas retórica crudelíssima no entanto, pois examina o péssimo comportamento presente na delação. Um editor francês do século 19 acentua: “Diabolé se traduz ordinariamente como calúnia; mas tal exegese é falsa. O próprio título o prova. Luciano não diria que não se deve acolher com ligeireza a calúnia, pois nunca devemos nela acreditar, visto que a calúnia é acusação falsa. Diabolé significa maledicência, ruídos verdadeiros ou falsos  espalhados contra um inimigo, no desejo de o prejudicar”. O texto ataca a delação caluniosa e a rapidez com a qual ela se espalha.  Quando as delações brasileiras são feitas e vazadas em velocidade similar à do jato, com ligeireza e pressa, vale reter a advertência.

 Luciano usa a história do pintor Apeles, que sofreu uma delação premiada de Antifilo, rival invejoso do seu talento e prestígio junto a Ptolomeu. Houve de fato uma tentativa de golpe, em Tira, contra o dirigente. Apeles nunca estivera naquela cidade, não conhecia o golpista Teodotas,  de quem sabia apenas ser um auxiliar de Ptolomeu. Mas Antifilo convenceu o quase deposto, ao insinuar que Apeles teria sido visto na Fenícia em almoço com Teodotas, sussurando aos seus ouvidos. Logo, a tentativa de golpe teria sido inspirada por....Apeles! Acostumado à lisonja, Ptolomeu não pesou elementos vitais da delação: ela vinha de um rival de Apeles, o próprio Apeles não tinha importância política para inspirar um golpe de Estado, Apeles nunca estivera em Tira. O acusado foi salvo por um golpista preso que, com nojo da baixeza exibida por Antifilo, declarou que o pintor nada sabia sobre o golpe. Ptolomeu assumiu a inocência de Apeles e lhe deu uma recompensa em dinheiro e Antifilo como escravo. Mas a vingança maior do artista veio ao pintar um quadro, cujo título é justamente “A Delação”. No Renascimento o motivo foi retomado por Botticelli (“A calúnia de Apeles”). Leon Battista Alberti trata o tema no De Pictura (3, 53-54).

Luciano assim descreve o quadro: “à direita está um homem que ostenta grandes orelhas, semelhantes às de Midas. Ele estende o braço para a Delação. Perto dele surgem duas mulheres, uma parecida com a Ignorância, a outra com a Suspeita. No outro lado vemos a Delação caminhar com a forma de uma jovem perfeitamente bela, rosto inflamado, submetido à cólera e ao ódio. Numa das mãos ela empunha a tocha ardente, com a outra, arranca os cabelos de um jovem que levanta os braços ao céu e parece tomar os deuses por testemunha. Um homem pálido e desfigurado a conduz. Seu olhar fixo e sombrio, o raquitismo extremo, fazem lembrar os doentes emagrecidos por  longa abstinência. O reconhecemos: é a Inveja. Duas outras mulheres seguem a Delação, a encorajam, arrumam suas vestes e cuidam dos enfeites. Uma é a Conspiração ( Epiboulé ) e a outra, a Fraude (Apatē) acompanhadas de longe por outra mulher cuja face anuncia a dor, vestida de negro, roupas rasgadas. Temos o Arrependimento (Metanoia). Ela chora, vira a cabeça e olha confusa a Verdade (Alētheia) que vem ao seu encontro”. No Brasil, uma pintura assim traria outro personagem alegórico: a cadavérica presunção de inocência.

Arte: LuppaSilva

Com a descrição (Ékphrasis) vívida, na qual recolhe pontos éticos, sobretudo os negativos, Luciano define a delação. “Uma espécie de acusação clandestina feita na ausência e sem o conhecimento do acusado, à qual um terceiro dá fé porque só existe uma fala,  sem contraditor”.  Na história milenar da infâmia, saímos da Grécia e chegamos ao Brasil. A delação implica má fé de quem a move, de quem ouve, de quem julga, de quem acusa. O delator não pode ser boa pessoa, pois gente honesta não prejudica nem delata, mas age em prol do bem coletivo. O delator é injusto, antes e depois de delatar, é  inimigo das leis e perigoso para quem o frequenta. A pessoa que usa, contra o próximo, a arma clandestina da delação rouba os ouvidos dos auditores, para os fechar às falas que a contradizem. Solon e Draco obrigam os juízes a ouvir a outra parte nos processos. É uma blasfêmia acolher apenas o acusador, sem escutar o acusado. A delação, continua Luciano, “violenta a justiça, a lei e o juramento dos juízes”. Em tempos de premiada e premida delação brasileira, vale a pena reler o texto, fonte de prudência e retidão ética.

Voltarei ao tema, revisitando autores que trataram do assunto. Segundo as notícias sobre a “luta contra a corrupção”, parece que muitos brasileiros, na sociedade e no Estado, em vez da prudência, imitam Ptolomeu. Eles decretam apressadamente a culpa antes de examinar a integralidade dos fatos e do direito. Immanuel Kant põe como base do saber científico o exame dos fatos com o maior rigor possível. E com não menor rigor, auscultar as leis que os sancionam, positiva ou negativamente. Tal lição é afastada pela midia, justiça e opinião pública. Semelhante “esquecimento” é um câncer a mais em nossa medonha ética e diabólico arcabouço institucional.

 

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