Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Sobre meninos e lobos, versão petflix

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Ilustra: Luppa SilvaAnimais de pequeno porte – como cães e crianças – sempre foram prolema para adultos que desejam e podem viver a vida.

O segundo tipo – o incômodo infante – não pesa igualmente para todos. A opção da creche, escolinha e colégio interno (ou quase) é óbvia e prática para o andar de cima da sociedade. Se você acertar no milhar, já existe uma saída para enjaular os pestinhas.

Para o andar de baixo, basta ver o déficit de vagas nas creches de São Paulo e outras grandes cidades. Ou a degradação das escolas públicas, em que até a merenda é “digerida e processada” por deputados, secretários e procuradores licenciados do Ministério Público.

Sou suspeito e, reconheço, algo inclinado a uma visão “desumana” do tema. Não tenho filhos, não transmitirei a ninguém o legado de nossa existência inútil, como dizia o personagem de Machado de Assis. E também não tenho “pets” – sou de um tempo em que os cães e gatos viviam na rua ou em quintais compartilhados, não em apartamentos e condomínios. Assim, deve ser alta minha insensibilidade para esses dois tipos de bens de consumo durável (ou não durável?). Paciência, corro o risco do linchamento dos nobres leitores que têm filhos ou cães e, por isso, compreensivelmente os estimam.

O que me levou a escrever esta crônica foi uma cena casual. Depois me dei conta, ela era nova apenas para mim, observador distraído. Um carro estacionado diante de um petshop que oferece hotel para cães. Um motorista fardado retira o príncipe do automóvel e o entrega ao atencioso funcionário de branco que leva o animalzinho para o interior de sua residência temporária.

Daí me bateu a curiosidade de saber como evoluía esse mercado. Nos parágrafos abaixo, restrinjo no que posso a menção aos nomes, não faz falta e talvez seja melhor para não ferir sensibilidades (e atrair processos).

Já existe uma associação de empreendedores do ramo, a Abinpet. Segundo a entidade, o setor cresce em média uns 15% ao ano. Tem hoje um faturamento anual próximo aos 18 bilhões. Um blog especializado faz um registro tocante: “Como todos sabemos, 2016 foi um ano de grandes reviravoltas políticas e econômicas, nosso país foi palco de grandes escândalos de corrupção, Impeachment, corte de gastos e reformas em políticas sociais. O cenário econômico brasileiro atual é de incertezas e inseguranças, mas em meio a toda essa turbulência uma luz no fim do túnel parece surgir”. [https://www.vetsmart.com.br/blog/2016/12/20/mercado-pet-e-perspectivas-para-2017/]

A luz no fim do túnel, doutor Henrique Meireles, é o mercado dos bichinhos! E o senhor nem desconfiava! Conta aí pro Michel, pro Padilha e para a Miriam Leitão.

A razão é óbvia, constatam os analistas: “Atualmente, há mais cachorros do que crianças no país”.  Em São Paulo, o numero de petshops equivale ao número de padarias. A frase do novo testamento poderia ser alterada. Sai o “vinde a mim as criancinhas”, entra o “traz para mim os bichinhos”.

O ramo é diversificado. O welfare state britânico era conhecido pela sentença: do berço ao túmulo. Cuidados à família trabalhadora em toda a extensão de sua vida e em todas as dimensões de suas necessidades.  O welfare pet vai no mesmo sentido.

Existe uma oferta de padaria pet – que inventou até mesmo uma cesta de natal para cães – o Natauau, com “panetone, vinho e ketchup desenvolvidos para o paladar canino”.

Ração sem conservantes, comida natural congelada. Não falta mesmo a oferta de alimentos veganos – não estou brincando. Afinal, o filhote deve ter acesso à mesma comida saudável dos papais. Faz algum tempo alguns aventureiros tentaram transformar bovinos em carnívoros, rompendo os limites de uma estúpida natureza. Deu na vaca louca. Um prodígio. Vamos ver no que dá a transformação de cães e gatos em vegetarianos.

A demanda por esse tipo de bens e serviços tem por substrato uma alteração nos modos de vida, como dissemos. Antes criados na rua e nos quintais, os bichinhos, agora, vivem em apartamentos e ambientes fechados, sobem nas camas e sofás, dormem com os donos. Não surpreende que precisem de tratamentos preventivos, shampoos aromáticos. Compensa o confinamento? Não é esse o motivo – é a proteção e o conforto dos donos que estão em jogo.

Eles agora são membros da família, dizem os analistas e os dirigentes da Abinpet. Um desses especialistas nos explica: "Hoje o cliente trata o animal como um filho ou como um neto e quer que o animal siga seu estilo de vida. Tanto que pessoas veganas hoje procuram produtos veganos para seus cães". Faz sentido. Talvez o inverso se estabeleça também: quem sabe o dono venha a seguir os comportamentos e modos de pensar do filhote adotado.

A “humanização” dos pets pode ser assim uma espécie de movimento combinado com a desumanização dos humanos. Isso faz ainda mais sentido se percebemos que o crescimento da oferta de petshops e similares é mais rápido do que o de creches e postos de saúde. Afinal, lembremos, no Brasil há mais cachorros do que crianças. E uma parte seleta desses caninos reside em lares bem mais aconchegantes do que milhões de crianças. Piegas a observação, não é? Pois é – é por isso que invertemos a frase de Cristo. Vinde a mim os que latem.

Um dos analistas diz que esse mercado não sentiu a crise porque está em expansão. O presidente da Abinpet diz, adequadamente, que o setor é hoje maior do que a linha branca de geladeira e fogão. Talvez esse mercado cresça não apesar da crise, mas pela própria direção da crise, da ampliação dos fossos sociais.

E o mercado se amplia também no escopo, não apenas na escala. Já há oferta não apenas de hospedagem para pets, alimentos variados, roupas de grife e brinquedos pedagógicos. Há, evidentemente, planos de saúde, pet plans, pet care e health for pet. Uma empresa especializada em terapia com células-tronco “reorientou seu foco” e passou a oferecer tratamentos para animais, em vez de humanos.

Para não escapar ao raciocínio canino que se expande em direção aos humanos, um dos dirigentes do ramo espinafra o vilão de costume: “Além disso, enfrentamos uma alta carga tributária, que aumenta em 51% o preço final dos nossos produtos”. E reclama da denominação de “produto supérfluo” para ração animal. Segundo o nosso neo-humanista, isso “vai contra a noção atual de como se trata os animais dentro de casa. O animal de estimação é considerado membro das famílias, e seu bem-estar garante a saúde de todos”.

Minha insensibilidade para com os bichinhos ainda me leva a estranhar a fala de uma entrevistada, em publicação do ramo. Apaixonada pelos seus dois cães de raça, ela confessa: "Todo o carinho que recebo dos animais compensa os gastos que tenho com eles. Quando viajei para a China, não resisti em comprar roupas de marcas de luxo. Esse tipo de produto daqui a pouco também será vendido no Brasil". Deus te ouça.

De fato, creio que tem algo de muito perverso em gente que aprecia maltratar animais. Mas, será que tratar animais com humanidade significa fazer com que deixem de ser o que são, usando coisas parecidas ao nosso shampoo e nossas roupas, comendo a comida vegana do dono? Sim, vamos lembrar: o cão tem dono.

Talvez essa “evolução” dos costumes nos leve ao risco de inverter as coisas, tratando como aceitável a desumanização dos humanos. Firma-se um modo de ver o mundo. Como se observou na tentativa do prefeito pervertido que queria introduzir ração animal reciclada na merenda escolar. Com a bênção de um piedoso arcebispo local. Afinal, dizia ele a um repórter: “você acha que pobre tem hábito alimentar? Se comer, tem que dar graças a Deus”. Repetindo, é um modo de ver o mundo.

Para não dizer que sou parcial e desumano, acrescento uma informação com duas ressalvas. A informação: abrigos para moradores de rua, em São Paulo, passam a ter canis. Muitos desses moradores se recusavam a ficar nos abrigos porque precisavam abandonar seus amigos-animais na rua. Justa medida, ok, primeira ressalva, relativa à parcialidade. Segunda ressalva: o apego desses cidadãos a seus bichos. Sinal de que vivemos em uma sociedade em que, talvez, até mesmo o cidadão de quem tudo se tirou aprecia mais seu animal do que outros seres humanos. Quem sabe estejam certos, pois não? O que em certa medida deveria relativizar a acidez do texto acima, de uma alma dura, de quem não tem cães nem filhos. O argumento é forte, reconheço.

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