Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

2018 e uma quadra de oitos

Edição de imagem


Ilustra: Luppa SilvaO ano de 2018 tem vários ecos. O aniversário de nascimento de Marx, 200 anos e várias mortes anunciadas. Os 50 anos do Maio francês, cantados e romantizados em prosa e verso. Os 60 anos da primeira Copa de futebol conquistada pelo Brasil, nascimento da pátria de chuteiras. Mas a data tem, também, alguns ecos menos notados e quem sabe mais pedestres. Em julho de 1968 irrompeu uma greve histórica em Osasco, munícipio na zona oeste da Grande São Paulo, um grito de revolta contra a ditadura. E em maio/junho de 1978 pipocavam as greves do novo movimento operário, reconstruído sob a mesma ditadura – efervescência entre metalúrgicos do ABC e da capital paulista, primeiro, e depois com repetecos em várias cidades e categorias do país.

Mas o mundo do trabalho era um em 1968 e 1978. É bem diferente hoje. As mudanças são visíveis. Literalmente. Este artigo traz algumas fotos que fiz recentemente. Uma câmera amadora e um fotógrafo menos do que isso. Mas acho que dá para perceber o drama retratado. O que você vê nas imagens é um piscinão, obra contra enchentes inaugurada em 2010, no bairro do Campo Limpo, zona sul da capital paulista. O interessante, porém, é o que estava ali, naquele buraco, tempos atrás. Aquilo já foi uma fábrica que ocupava cerca de três mil operários – Massey Ferguson, fabricante multinacional de tratores. E que foi palco, exatamente, de uma daquelas greves de 1978.

Essa cova a céu aberto é um dos tantos e tantos flashes que poderíamos fazer de diferentes regiões da grande São Paulo. Corredores industriais abandonados ou transformados em shopping centers, garagens e estacionamentos improvisados, depósitos de tranqueiras. Ou redesenhados, “gentrificados” como se costuma dizer – as torres de fumaça dão lugar a condomínios fechados. Mas para entender a dimensão da encrenca, vale a pena começar pelo enquadramento desse fenômeno.

Como sabemos, na segunda metade do século XX, o Brasil passou por duas grandes ondas de urbanização e industrialização. A primeira delas nos anos  50. Vários segmentos industriais se desenvolveram ou mesmo nasceram naquele momento. Um destaque vale para a indústria automotiva, com a implantação de filiais de montadoras europeias e norte-americanas, principalmente no ABC paulista, onde se formou uma espécie de Detroit em escala, uma espécie de redução homotética da região dos grandes lagos norte-americanos. A segunda onda veio nos anos 70, o chamado milagre brasileiro. A indústria de tratores é impulsionada nessa fase, graças ao sistema nacional de crédito agrícola, que induzia a quimificação e mecanização dos cultivos. A Massey Ferguson criou essa planta do Campo Limpo no começo dos anos 1960. Mas cresceu de fato no final da década. Chegou a concentrar três mil trabalhadores, magnetizando os bairros anexos e atingindo, já em 1972, a produção de mais de 20 mil tratores/ano. A unidade foi desativada nos anos 1980, com a transferência da produção para Canoas, Rio Grande do Sul. As instalações de Campo Limpo foram vendidas para a Sharp, que sobreviveu até a criação do piscinão.

Foto: Divulgação
Entrada da antiga fábrica da Massey Ferguson, multinacional que produzia tratores e chegou a ter 3 mil operários

A menção a Detroit, no parágrafo anterior, traz calafrios. Não é uma imagem tranquilizadora. Sob o impacto de vários fatores, inclusive a reestruturação das empresas automotivas, aquela vibrante capital norte-americana do automóvel transformou-se em algo próximo de uma cidade fantasma, com todas as consequências econômicas, sociais e psicossociais que acompanham esse processo. Um olhar comparativo sobre esse fenômeno, lá na matriz inspiradora da indústria brasileira, poderia nos ajudar a entender e quem sabe antecipar alguns desses efeitos. Tentaremos fazer essa viagem em artigos futuros, aqui no Jornal da Unicamp. Em breve, nas telas. De fato, não sei bem se “antecipar efeitos” é o termo certo, porque o futuro chega a passos rápidos na semiperiferia industrializada, dando autoridade ao velho mote: “é tua a história contada”.

Mas agora vamos pular para outro flagrante não muito longe desse campo limpo e devastado. Para Osasco, munícipio na região oeste da grande São Paulo. E completemos o enquadramento histórico acima iniciado com um passeio pelas efemérides do oito.

Como dissemos, em julho de 1968 irrompeu em Osasco, zona oeste da Grande São Paulo, a primeira grande greve a desafiar a ditadura militar. Verdade que fora antecipada pelos metalúrgicos de Contagem (MG), mas o movimento de Osasco foi mais amplo, organizado e, principalmente, mais dramático, com a ocupação de uma grande empresa, a Cobrasma, seguida da invasão pela Polícia Militar. Vários dos ativistas da greve caíram na clandestinidade, formando a vanguarda operária de organizações da esquerda armada.

Para muitos observadores alarmados, Osasco era uma “mancha vermelha”. Mas era, principalmente, uma cidadela operária. Quem entrava na cidade, atravessando a “fronteira” municipal, enxergava, na Avenida dos Autonomistas, um marco simbólico: uma grande engrenagem em cimento, com dísticos inegáveis: “Osasco, cidade trabalho”. Aliás, era uma versão simplificada do brasão da cidade, aqui reproduzido. A frase esculpida em pedra era um retrato em palavras. Logo na quadra a seguir, a avenida se abria em duas alas de fábricas. Um corredor em que desfilavam nomes como Brown-Boveri, Charleroi, White-Martins, Osram – os outros não me lembro, apagaram-se não apenas da paisagem mas também de minha memória. O enorme grupo Cobrasma-Braseixos ficava uns dois quilômetros mais para dentro do município.  

A engrenagem em pedra foi substituída por outra pedra, uma escultura moderna, o “torso do trabalhador”, sintomaticamente uma forma em que não há cabeça nem braços. O corredor de fábricas é hoje uma fileira de imóveis bem diferentes: revendedoras de autos, um campos de universidade privada, um grande shopping center, um conjunto de prédios de apartamentos cercado de jardins. E com fortes guaritas de vigilância. Um corredor fabril que já não há. Os galpões do grupo Cobrasma-Braseixos também foram esvaziados e leiloados. A fábrica e os operários foram metaforicamente abduzidos.

A Cobrasma – empresa chave da greve – era quase um símbolo de muitos aspectos do drama do trabalho no Brasil. Pelo que fazia e pelo que nela se fazia. Locus exemplar de uma forma de organização – a comissão de fábrica – foi também laboratório de muitos efeitos sinistros. A “evaporação” da planta é um deles. Outros são menos conhecidos. Um deles é parte de minha memoria afetiva. Lembro-me ainda de algo próximo de 1978, dez anos depois da greve, portanto. Acho que foi em 1976. Um de meus tios metalúrgicos, ainda na ativa, trabalhava na Cobrasma. Em certa medida, era meu informante sobre o que se passava na grande fábrica. Um sábado, no intervalo da cachaça a que se dava direito (um pouco exagerado), passou-me o jornal interno da empresa. Ele era membro da comissão interna de prevenção de acidentes e aparecia numa foto. Olhei a imagem e congelei com a aparição de um sinistro nissei. Perguntei por ele e meu tio confirmou: “sim, é o coordenador da comissão, um médico japa muito inteligente”. O nome ficou na história: Harry Shibata. O próprio: aquele do laudo que comprovava o “suicídio“ de Vladimir Herzog. Imaginei, em uma fração de segundos, quais laudos ele assinaria em uma fábrica de mecânica pesada, em que numerosos acidentes resultavam em mutilações e mortes.

Esse é o eco 1968, ou parte dele, já que houve outros no mesmo ano, inclusive o terrível AI-5, em dezembro. Mas, como adiantamos acima, 2018 teve outro eco, um pouco mais luminoso, dez anos depois da paralisação de Osasco. A onda das greves de maio-78, no ABC e na capital paulista. Uma dessas greves ocorreu na fábrica da foto – ou melhor, da fábrica que já não está na foto. A Massey Ferguson. Uma paralisação que também ocorreu “por dentro", com a ocupação pacífica dos postos de trabalho. E redundou em várias pequenas mas simbólicas conquistas, entre elas uma comissão de fábrica com eleição direta e estabilidade por um ano. Uma das lideranças dessa greve, meu amigo Helio Bombardi, que disputou a presidência do sindicato dos metalúrgicos da capital, em 1984, morreu este ano, aqui em Campinas.

Esses pitacos da história em movimento são mais do que lembranças nostálgicas. Saudosismo é uma doença perigosa. Certa vez um amigo fraterno, ironicamente, me mandou uma mensagem sobre campanhas eleitorais com uma provocação: “de ilusão também se vive”, parece que era título de filme. Devolvi com outra, um pouco maldosa: de nostalgia também se morre. Ele era um dirigente de greves em 1978 e a maldade era particularmente dolorosa. Nós sabemos nos ferir.

Essas imagens – e o que elas sugerem – são portanto mais do que referências a um passado idílico, até porque nada de idílico existia nos terrores que esses momentos abrigaram. Elas são, quem sabe, parte minúscula de uma recuperação analítica necessária, se quisermos entender e governar as forças transformadoras que remodelam nossa ordem social e, claro, nosso cotidiano de alegrias e tristezas.

 

Monteiro Lobato – Cidades Mortas

 

A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurge de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. (...)  Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.

(...)

Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito

(.....)

Isso, nas cidades. No campo não é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.
 

 

 

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