Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Universidades de portas e vozes abertas

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Foto: ReproduçãoUm dia desses li um texto comentando como a leitura de um artigo científico, produto final de um projeto de pesquisa, não permite vislumbrar o difícil processo de se chegar a esse resultado. O texto dizia que o mesmo acontece com uma obra de arte. Às vezes, tanto em ciência quanto na arte, o resultado final é completamente diferente do projeto inicial. Isso pode ser estendido a esta coluna, que tem pretensões bem menores do que a ciência ou a arte. A ideia original era escrever apenas sobre o evento do fim de semana na Unicamp, a universidade de portas abertas, mas a busca de conexões pelos sítios do mundo sobre o assunto levou a outras portas e também a outras vozes, que acrescento ao tema.

A universidade de portas abertas é um evento, que ocorre uma vez ao ano de apresentação da universidade ao público externo, em sua maioria jovens buscando um lugar para ir após o ensino médio. Na Unicamp é um acontecimento de grandes dimensões, são 40 mil pessoas vasculhando o campus durante um sábado. E já tradicional, seguindo uma tradição que se estende do Alasca a Macau, de acordo com os sítios que visitei. No Reino Unido, por exemplo, há um portal com um diretório que congrega os “open days” que acontecem por lá. Em Oxford será no final de junho. Pode-se comparar um dia de portas abertas a um festival e o da Unicamp aconteceu, coincidentemente neste ano, na mesma semana de outro festival, que se espalha pelo mundo e une ciência e público, o Pint of Science.

Festivais são imprescindíveis ao provocar grandes mobilizações, mas poderíamos pensar em variantes para mobilizar o público? Ou estender um festival para o ano todo? Seriam outras portas abertas e espaços para outras vozes, nos quais o Google (junto com a memória influenciando a seleção de palavras-chave) faz tropeçar. Um festival diferente? Encontrei-o no MIT, foi a festa oneworld@mit, que aconteceu recentemente: sustentabilidade com música e dança. O clip no canal Youtube do MIT dá a ideia que eles querem que se tenha da iniciativa. Do outro lado do Atlântico um festival de ciência espalhado pelo ano todo, mas conectado com arte. É o Science & Cocktails, que acontece em Copenhagen, uma “iniciativa que aproxima ciência e entretenimento por meio de séries de palestras públicas intercaladas com performances musicais/artísticas e coquetéis na sua mão”. Só no mês de maio são três dias e temas diferentes, mas mais vale a pena olhar o sítio para ter uma ideia melhor do que se trata.

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James Baldwin durante o debate com William F. Buckley na Universidade de Cambridge | Reprodução Youtube

Voltando à universidade de portas abertas e seu público, uma iniciativa que começou na Alemanha, mas agora passa a se espalhar pela Áustria, Itália e Suíça, é o Lernort labor- Laboratório Lugar de Aprendizagem [I]. O portal da iniciativa, em reconstrução no momento, apresenta um mapa de instituições – universidades, institutos de pesquisa, indústrias, entre outros – que tem atividades de ensino, dentro de suas expertises, para estudantes de ensino médio ao longo do ano. Uma rede de mais de 300 espaços de pesquisa preocupados com o ensino pré-universitário.  São experiências de um dia ou de imersão por períodos maiores. Os espaços conhecidos também como laboratórios para ensino extra-escolar, partem da premissa de que só a escola não é suficiente para a formação adequada em áreas de desenvolvimento tão rápidas como a ciência e a tecnologia nesses tempos acelerados. É outra maneira de abrir a porta das universidades.

A essa altura da busca de experiências mundo afora, lembrei-me do artigo “A universidade calada” [II] no dossiê sobre divulgação científica da revista ComCiência. O texto apresenta diferentes formas com as quais a universidade “fala” com a sociedade, embora não mencione especificamente as “falas” descritas acima. O “calada” em seu título se refere à fala jornalística de uma universidade: “Quando a universidade não fala – não fala da forma... jornalística, que é a única digna de uma universidade, a única voz aceitável, plural e muitas vezes dissonante, característica da diversidade universitária –, das duas uma: ou está sonegando da sociedade a riqueza de sua vida intelectual, livre e sem receio do ‘perigoso’ contraditório, ou na verdade está paralisada pelo medo, a intolerância e a mediocridade”.

A fala jornalística de uma universidade, no entanto, não é a única com as propriedades da dissonância e pluralidade do que deveria constituir uma universidade. As palestras pelos campi às quais estamos habitados são em geral abertas, mas mesmo assim distantes do público. Anda meio esquecida a tradição de palestras abertas, que acontecem em universidades mundo afora. Catando exemplos, começo por uma universidade jovem, a de Bayreuth, na Alemanha, com suas “Conversas com a cidade de Bayreuth”. São palestras para o público geral, realizadas em uma casa no centro da cidade e não no campus, sem ingressos ou inscrições. A ideia é a aproximação da universidade com a cidade e as palestras são mensais. O tema de junho de 2018 é: “A correção política – experiências dos Estados Unidos”. Ainda na Alemanha, a Universidade Livre de Berlim tem um sítio em inglês [III] para dar uma olhada. Universidades mais antigas têm em suas palestras públicas uma tradição secular, seja em Cambridge ou Princeton, embora nem sempre com calendário regular. Com essas palestras, a universidade se posiciona para o público sobre os temas que ela considera relevantes para a sociedade. É a universidade pautando em vez de ser pautada.

Parece suficiente, mas é possível (e preciso) ir além. Em alguns lugares as universidades cultivam o debate, bem mais do que nós, como parte institucional da formação dos estudantes. Debates não ocorrem apenas no âmbito das disciplinas, mas clubes de debate têm estatuto de organizações estudantis com competições nacionais. No entanto, há indícios de que, em tempos de polarização, o debate vem perdendo espaço também nesses lugares [IV]. A importância da cultura do debate, no entanto, é reafirmada pelo menos por um estudo acadêmico de George La Noue, de quem destaco o trecho abaixo, extraído da referência acima:

“Campi com uma cultura rica de debates frequentemente sofrem menos com a conformidade intelectual que leva alguns membros da comunidade (acadêmica) a acreditar que devam suprimir a expressão e pressionam outros a permanecerem calados. Além disso, debates políticos podem criar reconhecimento e espaço para perspectivas dissidentes que enriquecem as discussões em aula, agendas de pesquisa e decisões administrativas. Esses campi podem também colher os benefícios do aumento de respeito público, apoio político e saúde financeira.”

Nesses tempos difíceis, a defesa dos debates em bancos escolares feito em artigo de 2016 publicado no The Guardian é contundente. A defesa começa pela lembrança do “Debate Mitileneano”, que evitou o massacre da cidade de Mitilene (capital de Lesbos) na antiga Grécia [V]. Debates sim são imprescindíveis. Lembro aqui um que ocorreu na Universidade de Cambridge e que podemos rever facilmente, graças ao Youtube. Eram tempos de liberdade de expressão [VI] e debates faziam os polos da polarização se encontrarem, expostos aos argumentos dos outros e a mudanças de opinião. O título do debate era “O sonho americano foi alcançado à custa do negro americano?” O ponto de interrogação faz toda a diferença. O debate foi em duas partes, entre equipes de estudantes e depois entre James Baldwin e William F. Buckley. Merece ser visto e revisto, Baldwin venceu (após o debate houve votação) de lavada, mas não é isso o que mais importa aqui, e sim o debate em si, assistam pelo link no sítio referenciado [VII].

Vasculhando a rede encontro alento em um discurso de Drew Faust, presidente (reitora) da Universidade de Harvard, proferido em 2010 [VIII]:

“Universidades nutrem a esperança de um mundo: em resolver desafios que atravessam fronteiras, que desbloqueiam e aproveitam novos conhecimentos, em construir entendimentos culturais e políticos, em modelar ambientes a promover diálogo e debate.”

Ou reformulando totalmente alguns versos de Caetano Veloso: a universidade só se revelará à sociedade, não com seu isolamento (ainda que falando pelas missões de ensino, pesquisa – que às vezes pode parecer exótica – e extensão), permanecendo oculta, mas pelo papel (óbvio) [IX] que ela deve exercer: falar ao público. E debater.

 


 

[I] http://www.lernortlabor.de/home.html (sítio em alemão)

[II] http://www.comciencia.br/a-universidade-calada/

[III] https://www.fu-berlin.de/en/sites/offenerhoersaal/index.html

[IV] https://www.thecollegefix.com/bulletin-board/colleges-lousy-job-promoting-debate-campuses-research-finds/

[V] https://en.wikipedia.org/wiki/Mytilenian_Debate

[VI] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/sobre-o-premio-nobel-da-paz-e-liberdade-de-expressao

[VII] https://blog.debate.nyc/historical-debates/great-debates-in-history-october-26th-1965-buckley-vs-baldwin

[VIII] https://www.harvard.edu/president/speech/2010/role-university-changing-world

[IX] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/quarta-e-quinta-missoes-da-universidade

 

 

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