Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Rememorações sobre a Física no final da Guerra Fria

Autoria
Fotos
Edição de imagem


Foto: Reprodução Nos anos 1970, durante a minha adolescência, alguns sábados por ano eram dedicados pelo meu pai para que batêssemos pernas pelo centro de São Paulo em visitas às livrarias dessa região. Eram dias e lugares especiais, que guardo na memória, principalmente a saudosa Livraria Triângulo, a preferida do meu pai e na qual passávamos a maior parte do tempo. Fui descobrindo outras nas quais meu pai concedia que também parássemos. Foi nessa época que descobri os livros técnicos da editora soviética MIR. Um pouco mais tarde, já no início dos anos 1980, esses livros, muito mais baratos que os poucos nacionais e os muitos estrangeiros de outros países, eram alvo dos parcos orçamentos dos estudantes de Física. A União Soviética nunca obteve consenso, mas a editora MIR era venerada por todos nós [I]. Menos frequentes eram os livros em alemão editados na Alemanha Oriental de então. Um dos que eu comprei então uso até hoje, um manual de introdução à Física Quântica: Mikrophysik, parte I, de H. Löffler, Berlim, 1976. Resumido – sem ser superficial –, ostenta um capítulo interessante no final da primeira parte, “Algumas problemas epistemológicos”. A mecânica quântica funcionava muito bem, mas era desconcertante, pois no mundo microscópico os entes físicos se comportavam ora como partículas, ora como ondas, dependendo da medida realizada (princípio da complementaridade). É impossível saber ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula com precisão (princípio de incerteza) e nem se fala muito de posições e sim de probabilidades de encontrar determinada partícula em uma dada medida. Era a chamada interpretação de Copenhagen, que não era compartilhada por um bom punhado de físicos, que buscavam outras interpretações. A desse livro tentava conciliar esse desafio quântico ao determinismo com o materialismo dialético. No capítulo em questão, físicos eram citados junto com Marx, Engels e Lenin. Curiosamente, essas citações eram em notas de rodapé, desaparecendo no índice remissivo. Com isso, o autor atendia os ditames da censura estatal e não comprometia sua credibilidade junto aos “leitores burgueses” do outro lado da cortina de ferro.

A questão é interessante, não poucos estudos foram dedicados ao longo dos anos 1990 a esse esforço epistemológico soviético. Um exemplo, de livre acesso é um trabalho de Olival Freire [II] e Christhof Lehner [III]. O artigo traz à luz um manuscrito até então não publicado de Max Born, um dos criadores da Mecânica Quântica. Born criticava seu colega Leon Rosenfeld pela tentativa de mostrar que o princípio da complementaridade era um exemplo do materialismo dialético e, portanto, em total acordo com a filosofia marxista. Mas o debate era mais extenso e envolvia muitos personagens, entre eles o físico norte-americano David Bohm, perseguido pelo macartismo, que passou uns tempos na USP e obteve cidadania brasileira. A interpretação de Bohm buscava recuperar o determinismo para a mecânica quântica. Pode soar estranho e anacrônico, afinal a interpretação de Copenhagen é a que todos (nos cursos de Física) aprendemos, mas Bohm foi um baita físico e eu mesmo fiz alguns cálculos sobre o efeito Aharonov-Bohm. Quem quiser ler mais sobre ele, recomendo um texto de Christian Forstner [IV].

Foto: Reprodução
O físico norte-americano David Bohm

Mas vamos a outras rememorações. A biblioteca do Instituto de Física da Unicamp tem um corredor central: à esquerda, as estantes de livros; à direita, as estantes de periódicos, que eram um completo mistério para calouros. Boa parte dessas estantes era ocupada por fascículos de revistas soviéticas traduzidas para o inglês. Um dos pais da cientometria e promotor do inglês como língua franca da ciência, Eugene Garfield, criticou veementemente essas traduções [V]: “Tradução de capa a capa de revistas soviéticas – a ‘solução’ errada para o problema errado”. O problema foi a reação à vantagem inicial da União Soviética na corrida espacial. Uma explicação para essa vantagem seria o acesso que os soviéticos teriam à literatura científica ocidental sem a recíproca, dada a dificuldade com a língua russa. A decisão da National Science Foundation foi a de promover um programa de tradução em larga escala de todos os artigos de dezenas de revistas. Errada ou não, a decisão recheou as estantes de bibliotecas universitárias mundo afora.

Nessa mesma época (anos 1980) duas corporações nos EUA eram consideradas verdadeiras mecas para a realização de estágios de pós-doutorado ou anos sabáticos: os laboratórios da ATT-Bell e os laboratórios da IBM. De fato, com a Web of Science (desenvolvida a partir de um instituto criado pelo mesmo Garfield mencionado acima) é possível verificar por quê. Filtrando os artigos de Física publicados por instituições dos EUA, ATT-Bell Labs e IBM sempre figuravam entre os cinco maiores produtores de artigos daquele país, alternando posições com o MIT e o sistema de universidades da Califórnia, os Departamentos de Energia e Defesa do governo. Isso até o colapso da União Soviética, pois na década seguinte foram paulatinamente caindo no ranking de produção científica em Física. Mas pode ser só coincidência, o fim da “big industry science” costuma ser atribuído a mudanças contemporâneas nos cenários de negócios [VI] sem menção à Guerra Fria. Sempre tem mais de um fator, incluindo até fraudes que ficaram famosas [VII].

Essas recordações sugerem como um cenário político pode influenciar a organização da pesquisa, o posicionamento frente ao uso de uma língua na ciência e até a própria epistemologia. O período dessas recordações é o que David Kaiser chama de “segunda bolha” no livro “A Física americana e a bolha da Guerra Fria”, aguardem [VIII].

 


 

[I] Como lembrado pelo Alberto Saa após ler a coluna: o centro irradiador dessa veneração era a Livraria Rozov na 24 de Maio, especializada em literatura russa, que eu frequentei, mas não lembrava o nome.

[II] http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/01/16/olival-freire-junior-contador-de-historias-controversas/

[III] http://rsnr.royalsocietypublishing.org/content/roynotesrec/64/2/155.full.pdf

[IV] http://quantum-history.mpiwg-berlin.mpg.de/eLibrary/fileserverPub/Forstner_2005_Dialectical_Materialism_Bohm.pdf/V1_Forstner_2005_Dialectical-Materialism-Bohm.pdf

[V] http://garfield.library.upenn.edu/essays/V1p334y1962-73.pdf

[VI] https://www.insidescience.org/news/nobel-prize-recalls-bygone-era-big-industry-science

[VII] https://en.wikipedia.org/wiki/Sch%C3%B6n_scandal

[VIII] http://web.mit.edu/dikaiser/www/CWB.html

 

 

twitter_icofacebook_ico