Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Já não se fazem mais autores como antigamente

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Ilustração: Luppa Silva No começo dos anos 1990, passeando pela seção de painéis de um encontro de física, chamou a minha atenção um trabalho sobre estatística de distribuição níveis de energia em um cristal. Bem, não é importante aqui o assunto, não se preocupem, o tema é outro. Perguntei ao colega que estava apresentando o painel sobre essa estatística e a resposta foi que ele fizera os cálculos dos níveis de energia, não sabia interpretá-los e quem poderia responder a minha pergunta era o outro autor, que não estava presente. Conheci tempos depois esse colega e aprendi com ele sobre essa estatística de níveis, que acabei usando em alguns trabalhos já nesse século. Mas não foi por isso que nunca esqueci o episódio e sim pela questão que era inescapável: o que significava ser autor de um trabalho sem ter autoridade sobre todo o seu conteúdo? (É preciso dizer que os dois neste "causo" tornaram-se bons cientistas).

Lembro aqui que autor e autoridade são palavras com a mesma origem. Na época o desconforto que a questão suscitou foi aplacado pela lembrança de uma prática internalizada na comunidade científica a qual pertencia. Experimentos importantes são realizados por diferentes grupos utilizando amostras sofisticadas obtidas em poucos laboratórios. O uso dessas amostras configura um tipo de colaboração comum e os artigos resultantes dessas colaborações sempre têm o produtor das amostras como autor. Faz parte do paradigma da comunidade a percepção clara da função específica daquele autor na lista de autores.  A autoridade dele é sobre a amostra e não sobre a pesquisa resultante em si.  Então, inicialmente: o que é um autor? Olhando a ciência a partir das bases de dados, autor é todo aquele que assina um artigo indexado.

Foto: Reprodução
O filósofo francês Michel Foucault, que em 1969 deu a conferência “O que é um autor?”

Hoje a maioria dos artigos são multiautorais, muitos com dez, quinze ou mais autores em várias áreas das ciências naturais. Nas bases de dados todos eles recebem automaticamente uma citação a mais, quando o artigo em questão é citado. Mas qual é a função de cada um dos autores? Será que a função (contribuição) de um dado autor merece a citação que ele automaticamente recebe? O problema passou a ser parcialmente abordado por algumas revistas, que pedem a descrição do papel de cada autor no artigo publicado. Mas a coisa foi se complicando. Jason Osborne e Abigail Holland abordam a questão em um artigo com o interessante título “O que é autoria e o que deveria ser?” [I], começando pela enunciação de dois extremos. Por um lado mencionam um artigo relatando um estudo clínico internacional com mais de 900 autores. Relativamente poucos, perto da outra menção: os quase 3000 autores que assinam um artigo sobre a detecção do bóson de Higgs (a tal partícula de deus). Por outro lado, lembram o inventário de autores impossivelmente produtivos com 32 ou mais artigos por ano: um artigo a cada semana e meia. Meu antigo supervisor de pós-doutorado é um prêmio Nobel e, vasculhando outro dia seu currículo, descobri que seu recorde era (na virada do século) assinar 10 artigos científicos por ano, mesmo tendo um departamento inteiro à sua disposição (não só administrativamente, mas academicamente). Em um exercício de etnografia por memória posso dizer que ele tinha autoridade sobre a construção do conteúdo, a articulação e consistência das várias partes desse conteúdo e, finalmente, sua textualização: ele assinava e era de fato o autor com autoridade sobre o artigo como um todo. Desconfio da possibilidade de autorias com essas características para uma produtividade anual muito acima disso. A percepção é de que as diretrizes de avaliação acadêmica incentivam essa hiperautoria, bem como antecipam no tempo os autores. Há 50 anos esperava-se que um físico começasse a ser autor no final do doutorado. Na virada do século passou a ser quase mandatório que o mestrando assinasse um artigo científico. Hoje é comum que alunos de graduação sejam autores. O que tal precocidade acarreta?

“O que é um autor?” é o nome de uma conferência de Michel Foucault de 1969, mas o filósofo francês não estava considerando a autoria científica, mas que nessas últimas décadas passou a ter relevância crescente. Um sintoma dessa relevância, além das perguntas que coloco acima, é o final do título do artigo de Osborne e Holland, que menciono acima: “um levantamento de orientações proeminentes para determinar a autoria em publicações científicas”.  De um ponto de vista mais denso, recomendo o livro “Autoria científica – crédito e propriedade intelectual na ciência”, organizado por Mario Biagioli e Peter Galison [II]. O livro divide-se em três partes: a emergência da autoria, os limites da autoria e a fragmentação da autoria. Anuncia-se assim o que, pensando bem, não seria inesperado: se o artigo científico foi se modificando com o tempo, por que não o próprio significado de sua autoria? A emergência refere-se à delimitação ainda no período moderno de quem poderia ser considerado um autor científico, ou seja, um cientista. Os limites da autoria referem-se a questões mais contemporâneas como a relação do autor científico com outros atores não acadêmicos. O exemplo mais simples, ainda que não tão instigante, é o conflito entre o interesse do cientista em publicar e a exigência de sigilo por questões de propriedade intelectual de quem financia a pesquisa. Outro é a relação entre o cânone do conhecimento científico e conhecimentos nativos. A fragmentação da autoria é dedicada em grande parte à multiautoria, com a qual me ocupei no início dessa coluna. Um dos capítulos, de Peter Galison, é de acesso livre: “O autor coletivo” [III]. Esse autor coletivo é a “colaboração” em si, que envolve, por exemplo, os quase 3000 autores do trabalho mencionado por Osborne e Holland. Essa imensa lista de autores é como um abaixo-assinado que valida a reivindicação de conhecimento obtido pela “colaboração” declarada no artigo. É parte de uma institucionalização da ciência característica de um clube pequeno de instituições como o CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), cuja história fica para outra hora. Por agora interessam as questões levantadas por Galison na construção de seus argumentos e que se aplicam às multiautorias menos numerosas. Novamente: em uma multiautoria qual é a função de cada autor? Se cada autor tem uma função diferente, quem tem visão geral do trabalho e pode responder pela consistência do artigo e o conhecimento que este reivindica (como o meu antigo supervisor no exemplo mais acima)? Ou seja, de todos os autores que levam crédito igualmente nas citações registradas nas bases de dados, quem constrói de fato uma apercepção acerca do artigo que assina? A apercepção é um ingrediente fundamental na formação e na prática do cientista e não pode ser acelerada.

Última pergunta dado o andar da carruagem: que ciência estamos fazendo e que cientistas estamos formando?

 


 

[I]What is authorship, and what should it be? A survey of prominent guidelines for determining authorship in scientific publications. Jason W. Osborne and Abigail Holland, Practical Assessment, Research & Evaluation, Vol 14, No 15

[II] Scientific Authorship: Credit and Intellectual Property in Science, editado por Mario Biagioli e Peter Galison. Routledge (Taylor and Francis Group), 2003

[III] https://galison.scholar.harvard.edu/publications/collective-author

 

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