Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Forest Gump em um grande laboratório

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Ilustração: Luppa SilvaO grande laboratório é o LNLS, Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, vizinho da Unicamp. Há poucas semanas foi inaugurada a primeira etapa do novo anel, um Síncrotron de 4ª geração, a maior estrutura científica do país. Essa inauguração foi amplamente divulgada na imprensa, mas a matéria que mais chamou a minha atenção foi uma que conta a história de alguns de seus personagens: “Sirius: As mentes por trás do maior acelerador de partículas do Brasil”, publicada pela BBC Brasil [I]. Reproduzida no Facebook da Unicamp, rendeu mais de 1.600 reações e 600 compartilhamentos. As histórias das pessoas que fazem ciência precisam ser contadas e o público as aprecia. A matéria em questão evidentemente não conta a história de todas elas, mas reconheci os colegas que aparecem na foto que ilustra o texto, despertando a lembrança de outras tantas, que merecem ser lembradas. Nisso me dei conta de que testemunhei parte dessa história, simulacro em pequena escala do personagem do filme de mesmo nome que abre o título acima. Diz a matéria da BBC que o projeto do primeiro acelerador (a história é sobre o primeiro acelerador, que responde pela sigla UVX, o Sirius será o segundo) começou em uma sala da Unicamp. A sala era ao lado da minha, quando estudante de pós-graduação no Instituto de Física. Mas a minha relação (como mero figurante) com esse tipo de equipamento começa antes.

Em janeiro de 1982, mochila nas costas, abriguei-me na casa de um parente por escolha (a cultura alemã prevê esse tipo de relação, que nada tem a ver com sangue ou casamento), em Hamburgo, para passar algumas semanas em visita aos cinco institutos de física da universidade local. Tinha concluído o segundo ano de graduação e a instituição alemã era bem aberta a esse tipo de atividade: ganhei direito a frequentar a biblioteca, assistir aulas e acompanhar o dia a dia de alguns grupos de pesquisa. Da biblioteca eu lembro que tinham a Revista Brasileira de Física, das aulas eu me lembro bem da primeira: mais de 100 estudantes no auditório pedindo para o professor adiar uma prova, observação importante para  relativizar o que era dito para nós em salas de aulas brasileiras. O professor alemão concordou em adiar a avaliação. Dos grupos de pesquisa o mais acolhedor foi o liderado pelo Prof. Danielmeyer, voltado à pesquisa de lasers de estado sólido. Fui apresentado ao professor, que me disse na ocasião que fora convidado para ir para a Unicamp, que chegou a visitar em 1974. Perguntei por que não ficara e a resposta me persegue como um enigma até hoje: “porque havia dinheiro demais e isso não é bom para montar um laboratório”. De fato, o laboratório dele na cidade hanseática parecia bem mais modesto do que os que eu já bisbilhotara em Campinas.

Um dia o professor responsável pelas relações internacionais de um dos institutos de física (físico nuclear, cujo nome infelizmente não me vem à memória) anunciou uma excursão a outro campus (da Sociedade Helmholtz): o Síncrotron Alemão de Elétrons, conhecido pelo simpático acrônimo DESY na língua de Goethe. Esse acelerador era devotado à física de partículas, mas passou a ser dedicado também ao uso da radiação (luz) emitida pelos elétrons acelerados centripetamente para acompanhar a curvatura do anel (as cargas elétricas sempre fazem isso, emitem luz quando aceleradas). O anel para isso chamava-se DORIS e apenas parte do seu tempo era utilizado para o estudo de materiais (atividade que respondia pela sigla Hasylab – Laboratório de Radiação Síncrotron de Hamburgo) em vez de partículas elementares. Esses laboratórios adaptados eram o que passou a ser chamado de laboratórios de primeira geração. A partir da segunda geração, como o UVX do LNLS, os aceleradores passaram a ser exclusivamente projetados e construídos para investigar os materiais.

Ao ver aquilo, eu tinha a certeza de que, ao contrário do laboratório do Prof. Danielmeyer, um Brasylab seria impossível. Ainda em Hamburgo recebi uma carta manuscrita com uma proposta de um projeto de iniciação científica, enviada (para que eu estudasse o assunto nas férias) por quem viria a ser meu orientador, Cylon Gonçalves da Silva, que aparecerá mais à frente nessa história.

Poucos anos depois, no entanto, começamos a escutar os rumores de que um Laboratório Síncrotron seria construído em Campinas e toda a história, a partir da concepção pode ser conferida na linha do tempo. E, sim, Campinas foi escolhida como sede em 1985, e Cylon nomeado diretor em 1986. Por isso que a sala em que eu resolvia listas de problemas de mecânica quântica ficava do lado da sala onde o UVX começou ser projetado. Liu Lin (veja matéria da BBC) ficava nessa sala, junto com Lúcia Jahnel, que era companheira dos cafés na cantina. Minha e também de José Brum, ex-colega de república, futuro colega de sala e diretor do LNLS depois do Cylon. Lúcia aparece na foto em matéria do G1 [II], junto com outros integrantes da equipe. Entre eles o Ruy Farias, colega de turma e o Pedro Tavares, um dos integrantes da invasão oriunda da UFMG ao Instituto de Física da Unicamp (junto com Eduardo Miranda, que ficou por aqui, e Antônio Hélio de Castro Neto, que hoje às vezes está em Boston, às vezes em Singapura). Pedrão parece que está na Suécia [III], pelo que pude verificar: enxadrista amador gostava de usar a expressão “solapamento temático”, que eu nunca esqueci.

Reprodução


O LNLS deixou de ser uma sala e passou a ser uma casa alugada, que eu visitava para discutir física com o Cylon (agora meu orientador de doutorado), e a próxima mudança foi para um galpão, a primeira casa própria. Lá foi construído o acelerador linear (que injeta os elétrons no anel), que depois foi desmontado e remontado na sede definitiva, o campus do LNLS, depois ABTLuS e hoje Cnpen, nomes mais gerais, já que ao redor do acelerador outros laboratórios foram surgindo. A intimidade desse acelerador linear aparece como imagem para um poema de Rainer Maria Rilke declamado por José Leite Lopes no filme “Cientistas Brasileiros” [IV].

Mas de nada serve gerar a luz se não tivermos como aproveitá-la para esmiuçar a matéria, orgânica ou inorgânica, e o primeiro dos equipamentos para isso (chamado de linha de luz) foi construído aqui, desmontado, levado para teste em um Laboratório nos EUA e trazido de volta. Da equipe envolvida, lembro-me do Prof. Antônio Rubens Britto de Castro e do colega Paulo de Tarso (estão lá na linha do tempo). Em 1990 é lançada a pedra fundamental do campus do LNLS e o prédio do acelerador fica pronto em 1995, onde então as peças que compõem o todo foram sendo montadas.

Os elétrons deram suas primeiras voltas em 22 de maio de 1996, na mesma semana em que eu defendi a minha livre-docência. Na semana seguinte eu fui visitar o meu agora ex-orientador para contar a minha boa-nova, e ele me contou a dele. A primeira vez que os elétrons deram mil voltas seguidas em um acelerador síncrotron no Hemisfério Sul foram registradas em um panfleto que guardei durante esses 22 anos e que ilustra esta coluna (veja abaixo). A imagem superior é do feixe de elétrons no interior do anel. Os picos na imagem de baixo mostram os instantes em que o “pacote de elétrons” completava as voltas que duravam 0,3 microssegundo: tempo necessário para percorrer os cerca de 90 metros de circunferência a uma velocidade próxima à velocidade da luz.

Nunca trabalhei com algo relacionado a seu uso ou à ciência voltada a esses aparelhos, mas o laboratório de Campinas faz parte da minha memória afetiva. Talvez por isso tenha querido estudar algo sobre eles: como funcionam as diferentes e complexas colaborações que lá acontecem [V]. Movido por esse tipo de curiosidade vasculhei a produção científica do LNLS e procurei o primeiro artigo internacional com esse endereço. O primeiro artigo não tem nada a ver com aceleradores, pois era também o meu primeiro, sobre outro tema, mas junto com o meu orientador, que já era diretor desse novo endereço. E o primeiro artigo (e orientador) a gente nunca esquece.

 



[I] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45335690

[II] https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/laboratorio-sincrotron-a-luz-mais-brilhante-da-ciencia-brasileira-comeca-a-se-apagar.ghtml

[III] https://www.maxiv.lu.se/news/pedro/

[IV] Essa frase é um autoplágio. O filme pode ser acessado pelo youtube (a partir do minuto 28): https://www.youtube.com/watch?v=DB3PzzIrRTc

[V] https://link.springer.com/article/10.1007/s11192-018-2967-4

 

 

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