Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

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Ilustração: Luppa SilvaO debate sobre ciência “grande versus pequena” quase que inevitavelmente evoca o imaginário das pizzas, que é uma associação com algum sentido como metáfora. A ciência pequena seria o brotinho e a grande, o rodízio. O brotinho é a melhor estratégia para experimentar sabores desconhecidos aparentemente exóticos. A liberdade é total dentro do cardápio da pizzaria. Já o rodízio é excelente para marcar comemorações de grupos de adolescentes insaciáveis. As pizzas do rodízio podem ser caprichadas e de qualidade [I], mas as opções estão rigidamente restringidas dentro de um menu mais amplo. Na gastronomia em torno da pizza, brotinhos são estratégias importantes para a pesquisa de novos sabores, que posteriormente podem chegar a ser incorporados à lista oferecida pelos rodízios. Algo assim ocorre com a organização da ciência e abaixo colocarei no prato os exemplos anunciados na coluna passada [II].

A pizza também funciona como alegoria dessas descobertas em si. Pizza seria do ponto de vista gastronômico uma Terra Plana: um romance em muitas dimensões, escrito em 1884 por Edwin Abbott Abbott, que descreve um mundo fictício em duas dimensões. Na Física esse mundo em duas dimensões é real, só que para os elétrons e não seres humanos. Esse mundo bidimensional para as partículas fundamentais de carga elétrica é realizado em um tipo especial de transistor feito há tempos apenas com Silício. Esses elétrons bidimensionais submetidos a um campo magnético intrigaram [III] vários grupos de pesquisadores durante toda a década de 1970. Efeitos estranhos aconteciam com a resistência elétrica nessas “terras planas”, quando se variava o campo magnético.

Mas foi na madrugada de 4 para 5 de fevereiro de 1980 que o físico alemão Klaus von Klitzing observou finalmente que a resistência elétrica permanecia em um patamar constante para um intervalo de variação do campo magnético [IV].  Constante com a precisão então de uma parte em mil, o que era incrível, mas mais incrível ainda é que o valor da resistência coincidia com uma razão entre constantes fundamentais: a carga do elétron (ao quadrado) e a constante de Planck, assinatura da Mecânica Quântica. Nascia assim o efeito Hall Quântico, cujos desdobramentos ainda animam a comunidade científica quase 40 anos depois. Todo o caminho da descoberta foi descrito pelo próprio von Klitzing [V] e destaco aqui alguns aspectos. A epifania ocorreu de madrugada em um laboratório de altos campos magnéticos na França. Precisava ser de madrugada, pois o consumo de energia elétrica do equipamento era altíssimo e em outro horário atrapalharia a rede elétrica de toda a cidade de Grenoble. Era um equipamento de ciência grande a serviço das pequenas. O artigo relatando o efeito foi submetido a uma prestigiosa revista, que inicialmente rejeitou o manuscrito. Mesmo assim, a comunidade científica acabou contagiada e um dos pareceristas que havia recusado o trabalho, assistiu a uma palestra sobre o mesmo, conversou com o palestrante (von Klitzing) e mudou de ideia! Estava pavimentado o caminho para o prêmio Nobel de Física de 1985.

O depois famoso artigo é assinado apenas por três autores, Klaus von Klitzing, Gerhard Dorda e Michael Pepper. Este último emprestou a “terra plana” de Silício, que era objeto de estudo do segundo autor. No final do artigo não existe agradecimento a nenhum financiamento especial, apenas a colegas que ajudaram na preparação daquele experimento e de posteriores para confirmar os resultados daquela madrugada. Somente Pepper menciona um apoio financeiro parcial. Aquele ano foi mesmo especial, além do artigo sobre a grande descoberta, von Klitzing publicou outros sete, mas no ano anterior não havia publicado nada e no seguinte apenas dois. Número não é documento, parece. Isso, porém, foi há bastante tempo, hoje as coisas seriam diferentes, assim vasculho o que disse recentemente esse prêmio Nobel ao editor de uma revista científica [VI]:

“...você nunca pode prever grandes saltos e, portanto, eu sempre lutei pela liberdade na ciência – a possibilidade de desviar. Eu sempre fui bem-sucedido com desvios. Se eu tinha um plano de chegar a um lugar em dois anos, eu sempre fui mais bem-sucedido em outra coisa em vez do objetivo original. Portanto, devemos sempre ter cuidado com projetos que pretendem entregar algo: normalmente é mais difícil”.

Para afastar mal entendidos, desvios com epifanias só ocorrem com trabalho árduo. É como o improviso no Jazz: não fica bom se o músico não se debruçar com afinco sobre partituras por um longo tempo antes. Von Klitzing, por exemplo, já medira o efeito Hall quântico sem reconhecê-lo sete anos antes de sua descoberta.

Foto: Reprodução
O físico alemão Klaus von Klitzing: epifania no meio da madrugada

O outro exemplo de ciência pequena é menor ainda e uma terra plana bem mais achatada. É a descoberta do Grafeno, uma camada de apenas um átomo (Carbono) de espessura. O trabalho, devido a Andre Geim e Kostya Novoselov, é recheado de improviso e irreverência e foi realizado em 2003-2004, levando o prêmio Nobel de Física à dupla em 2010. Foi assim que chegaram ao Grafeno: removendo um pouco de grafite para um pedaço de fita adesiva colada sobre um pedaço desse mineral, descolando a fita e transferindo o resíduo sobre um substrato. Depois transferiam para outro pedaço de fita parte desse material pelo mesmo processo. E fizeram isso sucessivamente até ter apenas uma camada de átomos de Carbono na transferência final. E assim conseguiram um material que começou a aparecer no imaginário científico décadas antes. A engenhosidade estava também na técnica para identificar que finalmente havia apenas essa única camada de átomos em algum canto do tal substrato. E em explorar toda uma nova “física na ponta do lápis”, que se revelou surpreendente, até o efeito Hall quântico ali era diferente do original.

Andre Geim é um cara divertido, como pode ser verificado em uma entrevista em um evento da Royal Society [VII].

“Geim disse que muitos dos seis ou sete milhões das pessoas mundo afora que fazem pesquisa profissional estão presos a um estilo de ciência que ele compara a ‘uma linha de trem que vai do seu berço científico ao caixão científico’, uma linha que é ‘absolutamente direta’ e onde distrações não são permitidas.”

Ele já era conhecido por receber, sem nenhum constrangimento, o prêmio Ig-Nobel de 2000 pela levitação de um sapo que ele jogou em um equipamento caro e sofisticado para tornar mais visível o fenômeno que ocorria. Repetiu a dose com o hamster da filha, que assinou o artigo científico correspondente junto com ele. Dessa época ele conserva a ideia do experimento de sexta à noite na sua maneira de trabalhar: “buscar e não rebuscar” (“search and not re-search”). Foi por aí que surgiu a ideia que levou ao Nobel. Mas atenção: não foi como ganhar na loteria, Andre Geim é também pesquisador árduo e sistemático para dar sentido às irreverências.

Foto: Reprodução
Carta endereçada por criança a Andre Geim: entre a levitação do sapo e a descoberta do Grafeno, que lhe renderam, respectivamente, o IG-Nobel e o Nobel, irreverência e muito rigor   

Esses dois exemplos lembram, além da pizza, o “pequeno” Cinema Novo brasileiro, quando Glauber Rocha defendia “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Com um pouco de exagero retórico, podemos dizer que von Klitzing, Andre Geim e Kostya Novolevov, além de suas ideias na cabeça, tinham pouco mais do que um transistor de Silício ou uma fita adesiva nas mãos.

Isso não desmerece a ciência grande, como atesta o recente trabalho publicado na Science sobre a extinção dos anfíbios, nem o cinema grande: há exatos 50 anos estreava 2001 – uma odisseia no espaço de Stanley Kubrick, para ver e rever. As metáforas aqui não são fábulas, mas a moral da história é que a organização, financiamento e avaliação da pesquisa precisam deixar espaço para buscar, além de rebuscar.

 


 

[I] Esse sentido dado à grande pizza é uma invenção paulista nem sempre tão preocupada com a qualidade:  https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/grupo-sergio-lugar-de-gente-feliz/

[II] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ciencia-pequena-media-ou-grande

[III] Aliás, continuam intrigando.

[IV] Na verdade, outro parâmetro era o que variava no experimento, mas é equivalente ao descrito acima que simplifica a narrativa.

[V] https://www.annualreviews.org/doi/full/10.1146/annurev-conmatphys-031016-025148

[VI] https://pubs.acs.org/doi/10.1021/nn800179w

[VII] https://blog.sciencemuseum.org.uk/secret-of-scientific-creativity-revealed-by-andre-geim-godfather-of-graphene/

 

 

 

 

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