Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

As universidades e as ditaduras

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Ilustra: luppa SilvaAs marcas da última ditadura no Brasil ecoam no cotidiano do país e, mais do que nunca, é fundamental abordarmos episódios, processos e consequências do período autoritário sob comando dos militares (1964-1985). Vidas e sonhos interrompidos são motivos mais que suficientes para questionar o arbítrio, a interrupção da ordem constitucional e os desmandos que foram cometidos à época. O trauma da ditadura, que alguns insistem em relativizar, é tanto que a sociedade brasileira demorou para abordar alguns aspectos relacionados ao cotidiano e ao funcionamento das instituições durante o período ditatorial.

A recente publicação da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (CV-USP), em março de 2018, insere-se no espírito da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade e fez com que várias comissões surgissem com focos mais específicos. Os trabalhos da CV-USP, assim como o trabalho da Comissão da Verdade e Memória da Unicamp, permitem reflexões importantes sobre o papel das universidades e como elas são impactadas em contextos de repressão física e simbólica à circulação de ideias e à livre organização e discussão de pessoas e grupos.

O relatório da Comissão da USP apontou que mais de 10% das 434 pessoas que morreram ou desapareceram durante a ditadura tinham relação com a USP: 6 professores, 39 alunos e 2 funcionários perderam suas vidas. 22 das 47 vítimas desapareceram entre 1971 e 1973.

O trabalho da Comissão, presidida por Janice Theodoro, professora titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Letras (FFLCH), é dividido em 10 volumes, fartamente documentado e com ricos depoimentos. As graves violações de direitos humanos, que atingiram duramente docentes, funcionários e estudantes ocorreram com a participação de parte da administração central da USP e seus funcionários.

Um dos pontos altos do relatório é o papel da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), órgão criado em 1972, durante a gestão do reitor Miguel Reale (1969-1973). A AESI era uma agência de informação vinculada à Reitoria da USP, “atribuindo a seus responsáveis a triagem ideológica e o fornecimento de informação aos órgãos de segurança para perseguir pessoas com base em suas posições políticas contrárias à ordem estabelecida”, conforme se lê no relatório da Comissão.  A AESI funcionou pelas gestões seguintes e foi extinta, apenas, em 1982.

 

USP e Unicamp na ditadura

A Comissão da Verdade da Unicamp questionou o mito de que a Unicamp teria sido uma “ilha” em meio à perseguição da ditadura. A leitura do documento da USP faz relações diretas à Unicamp e ao modo específico como a gestão de Zeferino Vaz atuou em contraponto à gestão de Miguel Reale. A Unicamp, por exemplo, não criou a AESI e muitos professores que foram impedidos de trabalhar na USP atuaram na Unicamp, como é o caso de Maria Hermínia Tavares de Almeida.

O depoimento do ex-diretor do IFCH, Rubens Murillo Marques, utilizado no relatório da USP, reforça a ideia de “um ambiente relativamente salvaguardado do controle e repressão ostensivamente presentes em outras universidades brasileiras durante esse período”. 

Porém, há situações mais controversas. O relatório da USP destaca o papel de Krikor Tcherkesian, funcionário da AESI comissionado na USP durante as gestões de Miguel Reale (1969-1973) e Orlando Marques de Paiva (1973-1977). Tcherkesian era responsável por informes sobre a USP e a Fapesp que nem mesmo o Serviço Nacional de Informações (SNI) endossou.

De acordo com o relatório, o assessor denunciou os “focos esquerdizantes” da Fapesp, da SBPC e citou mais de 400 pesquisadores internacionais e brasileiros como Fréderic Mauro, Michel Foucault, Paul Singer e Maria Isaura de Pereira Queirós. Os informes de Tcherkesian condenavam “o apoio financeiro da Fapesp a projetos de pesquisa científica com o suposto propósito de ‘(...) deturpar fatos históricos’”. O documento registra ainda que, se as recomendações de Krikor tivessem sido levadas ao extremo, a pesquisa científica teria sido fortemente comprometida em diversas áreas. De qualquer forma, as interrupções de carreiras, os obstáculos a financiamentos de pesquisa e outras práticas condenáveis, aconteceram a partir da atuação da AESI.

Krikor Tcherkesian foi designado pelo cargo, de acordo com o relatório, por ser irmão de Arminak Tcherkesian, que era homem de confiança do ministro da Educação, Jarbas Passarinho. A nomeação pelo reitor Miguel Reale indica a expressa cooperação da reitoria com o II Exército. Tcherkesian foi desligado da USP em 01/04/1976. O SNI, em 1977, questionou a criação da AESI/USP, pois a legislação previa o funcionamento desse órgão apenas na jurisdição federal, e questionou a idoneidade do assessor.

O fato curioso é que, sem menção nos documentos da CV-USP, o senhor Krikor Tcherkesian foi nomeado para trabalhar na Reitoria da Unicamp, como informa o registro do Diário Oficial do Estado de São Paulo (06/07/176). A questão, por certo, abre caminho para investigar sobre os mecanismos empreendidos por colaboradores do regime ditatorial nas universidades públicas. O que teria levado Zeferino Vaz a incorporar o ex-assessor da USP na Unicamp? Tcherkesian não desempenhou, de fato, atividades na Unicamp?

Imagem: Reprodução
A nomeação de Krikor Tcherkesian foi publicada no Diário Oficial

 

Enfrentando questões e traumas

As frágeis liberdades de um país que passou por longeva experiência ditatorial, aliado ao autoritarismo arraigado presente também em períodos considerados democráticos, tornam mais difícil e complexo abordar o passado recente. As disputas pelo passado e por suas memórias indicam que, na impossibilidade de uma clara condenação à violência política e aos crimes contra os direitos humanos, há a resiliência de parte da sociedade que foi ou é partícipe de um processo doloroso e vergonhoso. As vozes que se levantam em redes sociais na atualidade para defender uma “intervenção militar” são, potencialmente, a permanência das vozes que apoiaram o regime de outrora. 

Continuar ignorando os crimes ou desqualificando as denúncias é um modo de corroborar, no presente, a emergência de discursos autoritários que ameaçam o pleno funcionamento de um regime democrático. Trabalhos como o das Comissões da Verdade são fundamentais por permitir que vejamos não apenas as vítimas da ditadura, mas também os seus mecanismos de funcionamento e seus colaboradores.

Se não formos capazes de questionar as responsabilidades de diferentes segmentos sociais durante a ditadura, corremos o risco de pensar em uma imagem dicotômica em que, apenas o Estado, sem indivíduos e apoios populares, teria praticado tantas atrocidades e violências que comprometeram o futuro do país. Nesse exato instante, no presente mais imediato, parece evidente os malefícios de uma ditadura não se apagam facilmente e, o esquecimento, é uma de suas armas para continuar a encontrar apoiadores.

O direito de conhecermos e questionarmos o passado é o mínimo compromisso do presente com as gerações futuras.

No link abaixo, o infográfico com as principais informações quantitativas da Comissão da USP

http://jornal.usp.br/especial/comissao-da-verdade-da-usp-parte1/

 

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