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Uma cidade percorrendo os filmes

Cineasta Ugo Giorgetti inicia nesta semana atividades como artista residente do IdEA em programação que vai até novembro

Viver durante sete décadas em uma cidade caótica e multifacetada como São Paulo rendeu muitas histórias para Ugo Giorgetti. Grande parte delas ficou gravada em película e foi às telas pelas mãos do experiente cineasta paulistano que, a partir de agosto, inicia seus trabalhos como primeiro convidado do Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente. A iniciativa do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp prevê a exibição, pela primeira vez em uma mostra, da filmografia completa de Giorgetti, reunindo 19 obras produzidas desde a década de 1970, seguidas de debates com o diretor, roteirista e produtor.

A residência artística proporcionará também aos interessados em cinema a oportunidade de participar de um curso livre e gratuito com Giorgetti durante 13 semanas, discutindo temas diversos da produção, como o roteiro, a direção, o cinema publicitário, a convergência do trabalho de ator no cinema e no teatro, a equipe no set de filmagem, a transição do analógico para o digital, o papel do Estado na atividade cinematográfica, as características do documentário e da ficção, a crônica de futebol, entre outros.

Ao pensar sobre quais contribuições poderia oferecer ao Programa “Hilda Hilst”, durante conversa com o coordenador do IdEA, Alcir Pécora, Giorgetti ficou surpreendido ao empreender uma autoanálise da carreira e identificar uma unidade que não havia percebido. “Quando você faz um trabalho, trabalha completamente às cegas. Uma ideia te ocorre sem saber por quê. Mas quando fui pensar nesses filmes, eu descobri algo que nunca havia me ocorrido: eles podem ser organizados como se fosse o desenrolar da cidade de São Paulo no tempo.”

Foto: Perri
O cineasta Ugo Giorgetti: “Quando fui pensar nesses filmes, eu descobri algo que nunca havia me ocorrido: eles podem ser organizados como se fosse o desenrolar da cidade de São Paulo no tempo”

A mostra “São Paulo segundo Ugo Giorgetti”, que acontecerá na Casa do Lago, a partir de 14 de agosto, às terças-feiras, às 18h30, reunirá longas, médias e curtas-metragens, incluindo documentários e produções para a televisão, desde “Campos Elíseos”, de 1973, até “Uma Noite em Sampa”, de 2016. A filmografia foi organizada não pela ordem cronológica de produção, mas pela época retratada nas obras, desde o final do século XIX, com o fluxo migratório reconfigurando a cidade de São Paulo, até os anos 2010, em que a violência – real ou imaginária – rege a vida de grande parte da população.

Essa leitura sobre o desenvolvimento da capital paulista acontece pelos olhos de um descendente de italianos que nasceu e foi criado no bairro de Santana, na longínqua zona norte paulistana dos anos 1940 e 1950. Depois de ingressar no curso de Filosofia na USP em 1963, Giorgetti desistiu da área e acabou seguindo carreira como publicitário, o que não era propriamente visto com bons olhos em uma época de polarização ideológica pós-golpe de 1964. O contato com a propaganda, entretanto, seria o estopim para sua incursão no cinema.

“Eu não sou um cineasta muito cineasta. Trabalhei muitos anos na publicidade, tive um pé aqui, outro ali, sou uma figura muito diferente”, afirma Giorgetti sobre seu percurso profissional. No entanto, ele mesmo reconhece que vários diretores de cinema tiveram atuação no ambiente comercial da publicidade, citando colegas como Roberto Santos (1928-1987), Luis Sérgio Person (1936-1976), Maurice Capovilla (1936-) e Walter Hugo Khouri (1929-2003).

Avesso às discussões teóricas sobre cinema, o diretor paulistano guiará com um enfoque muito pessoal e pragmático o curso que vai oferecer na Unicamp, como destacar a importância que o cinema publicitário teve para a produção brasileira de ficção e documentário. Segundo ele, grande parte dos equipamentos era emprestada das produtoras de filmes publicitários e as equipes técnicas acabavam atuando nos dois ambientes. A escassez de recursos sempre deu o tom para a atividade de cinema no país, e a produção de Giorgetti não foi diferente, demandando improvisos que muitas vezes podiam até esbarrar no amadorismo.

Depois de “Campos Elíseos”, sobre a ascensão e declínio do bairro, Giorgetti fez um perfil da degradação do famoso “Prédio Martinelli”, em 1975, também emprestando recursos da produção publicitária. O mesmo se repetiu no documentário seguinte, “Quebrando a Cara”, finalizado em 1986, que colocava os holofotes sobre a carreira do lendário pugilista Eder Jofre. Sua estreia na ficção foi com “Jogo Duro”, de 1985, seguido pela comédia “Festa”, de 1988, estrelado por Antonio Abujamra, Adriano Stuart e Jorge Mautner e premiado no Festival de Gramado. “As pessoas começaram a compreender que eu não era mais um publicitário em ‘Festa’.”

Foto: Reprodução
Cartazes de filmes dirigidos por Giorgetti: Casa do Lago vai exibir todas as obras do cineasta

Apesar do movimento de desvinculação da publicidade, Giorgetti se inspirou exatamente nesse ambiente para sua produção seguinte. “Sábado” (1995) retrata um set de filmagem de um comercial de perfume em um prédio histórico, mas decadente, no centro de São Paulo, a exemplo do próprio Martinelli.

O reconhecimento da crítica, entretanto, não garantiu um aumento significativo do público nas salas. Giorgetti, que nunca foi um campeão de bilheteria com seus elogiados filmes, abordará no curso o papel essencial que o Estado tem no financiamento das produções brasileiras. “O cinema brasileiro é um cinema que não tem público. Existe um público, sim, para determinado tipo de filme. O Mazzaropi [1912-1981] nunca se queixou de falta de público, os Trapalhões, essas patacoadas que a Globo faz agora, essas comédias, fazem algum público. Mas se há um filme que trata da vida de uma maneira um pouquinho mais complexa – não é filme ‘cabeça’, mas que fale da vida como um fenômeno um pouco mais complexo –, ninguém vai.”


Interação e prática

O curso “O Cinema e a Criação de Ugo Giorgetti”, que começa em 15 de agosto, vai permitir aos alunos uma oportunidade exclusiva de colaborar no roteiro do próximo filme do diretor. As melhores propostas serão incorporadas na preparação do argumento do longa-metragem de ficção baseado em uma história real e inusitada de um homem e uma mulher presos no porta-malas de um carro. A ideia para o longa veio de um caso real, como vários aproveitados por Giorgetti ao longo da carreira. Na época em que trabalhava como publicitário, certa vez ouviu de um motorista que prestava serviço à sua empresa que ele havia faltado no dia anterior porque tinha sido sequestrado por criminosos e colocado em um porta-malas junto a uma desconhecida. Décadas depois, o episódio vai ganhar as telas.

“Vamos começar o curso falando sobre o roteiro e explicar aos alunos que qualquer pessoa pode escrever um roteiro. Não é necessário ser cineasta para escrever um roteiro, precisa escrever bem”, destaca. Para o diretor, produtor e roteirista paulistano, não é preciso uma descrição esmiuçada do que se pretende fazer com a câmera no roteiro, como indicar as lentes empregadas, porque, no final, é o diretor quem vai decidir.

Nesses mais de 40 anos em que Giorgetti está em atividade, muitas transformações ocorreram na área tecnológica, principalmente com a ascensão das produções digitais, e isso também será abordado nos 13 encontros que acontecem até novembro. Seus dois filmes mais recentes, “Cidade Imaginária” (2014) e “Uma Noite em Sampa” (2016), foram os primeiros com câmeras digitais. “Não mudei meu fazer no cinema com essas mudanças, mas o digital atingiu um padrão comparável com a película, 35 mm, uma qualidade muito boa.”

Há 20 anos, ainda na era do cinema analógico, Giorgetti filmou uma de suas obras mais conhecidas, “Boleiros” (1998), com Adriano Stuart, Flávio Migliaccio e Otávio Augusto, composta por várias histórias do universo do futebol rememoradas em uma divertida conversa de bar. O sucesso rendeu uma continuação, “Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos”, oito anos depois. Outro filme dele produzido sobre esse universo foi “Comercial F.C. – A Equipe Fantasma”, curta-metragem para a televisão feito na Copa do Mundo de 2014 que mostra a curiosa história do time do centro de São Paulo que desapareceu sem deixar vestígios. Essa verve humorística e a paixão pelo futebol levaram Giorgetti a se tornar cronista esportivo nas páginas do jornal “O Estado de S.Paulo”, onde assina uma coluna aos domingos desde 2006. A crônica de futebol também será tratada em uma das aulas na Unicamp.

Entre os novos projetos, Giorgetti está dirigindo um documentário sobre o economista Paul Singer (1932-2018), fundador do Partido dos Trabalhadores, cujas filmagens estão sendo feitas com recursos de uma campanha de financiamento coletivo que já obteve mais de R$ 160 mil. Referência da economia solidária, Singer nasceu na Áustria e chegou ao Brasil em 1940 fugindo do nazismo. Um dos objetivos do filme é produzir um retrato intelectual da própria cidade de São Paulo em um período conturbado de sua história.


SERVIÇO

SÃO PAULO SEGUNDO UGO GIORGETTI

Ciclo completo da filmografia do cineasta paulistano; após as exibições haverá um debate com a presença do diretor.

Data: 14/08/2018 a 06/11/2018 às terças-feiras.
Horário: 18h30 às 21h45.
Local: Cinema da Casa do Lago. Av. Érico Veríssimo, 1011, Cidade Universitária, Campinas.
Programação: www.idea.unicamp.br/filmografia-ugo-giorgetti
Realização: Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp.
Informações: (19) 3521-5223, idea@idea.unicamp.br e www.facebook.com/idea.unicamp/.

 

O CINEMA E A CRIAÇÃO DE UGO GIORGETTI

Curso livre com o cineasta paulistano sobre aspectos diversos da produção cinematográfica em 13 encontros.

Data: 15/08/2018 a 07/11/2018, às quartas-feiras.
Horário: 10h ao meio-dia.
Local: Instituto de Estudos Avançados (IdEA). Av. Oswaldo Cruz, 301, Cidade Universitária, Campinas.
Inscrições: www.idea.unicamp.br/o-cinema-e-criacao-de-ugo-giorgetti
Realização: Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp.
Informações: (19) 3521-5223, idea@idea.unicamp.br e www.facebook.com/idea.unicamp/.

 

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Fotomontagem com duas imagens, sendo, à direita, foto preto e branco em campo de futebol, nos anos cinquenta, de árbitro de futebol, em imagem frontal e de busto, com os olhos fechados e o dedo indicador esquerdo em riste na cara de um jogador, de costas na imagem, que usa camisa com o número dois e aponta com o braço esquerdo para a esquerda, como se reclamasse de algo com o juiz. Na outra imagem, em detalhe, à esquerda, foto três por quatro de um senhor que usa óculos. Imagem 1 de 1.

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