Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Golpes à vista!

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Foto: ReproduçãoApós o regime imposto em 1964, poucos acadêmicos e políticos acreditavam que no futuro próximo haveria ameaça de outro golpe civil militar. A confiança era tamanha que alguns pontos estratégicos passaram sem grandes traumas na Carta de 1988. Uma batalha ganha pelos defensores do status quo autoritário foi definida no Artigo 142: as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Anódina na aparência, tal fórmula permite ao poder público exigir dos quartéis intervenções no campo civil, para manter a norma e impedir sublevações. Nada, em tal item, traz novidades para quem estuda a história dos Estados antigos, modernos e contemporâneos. De modo diverso ao previsto no Artigo 48 da Constituição de Weimar, a convocação do braço castrense não é agora atribuída apenas ao Presidente da República, mas aos três poderes. Leia-se o texto de Ruth Zimmerling, Alemanha: parlamentarismo e o fantasma de Weimar (Scielo). Trata-se de uma diferença considerável, sobretudo se levarmos em conta a hegemonia mantida pelo Executivo federal brasileiro.

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Acima, Castelo Branco (à dir.), 1º presidente da ditadura militar; abaixo, Costa e Silva assina o AI-5, em dezembro de 1968

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Deixemos de lado a capacidade de operacionalizar o uso da força pelos três poderes. O fato é que a Carta garante a legalidade da intervenção militar. Durante o tempo em que o texto magno foi elaborado, os responsáveis por aquela parte se dividiram. Os mais arredios à democracia direta e à soberania popular apoiaram a redação final, mas queriam maior rigor no texto. Os democratas desejavam atenuá-lo ao máximo. E perderam.

Sigo adiante na lógica subjacente à fórmula acolhida e promulgada. A menção explícita à lei e à ordem retoma uma história milenar, vivida desde a república romana. Refiro-me à ditadura. Consultemos os pensadores das Luzes que recolhem os elementos históricos, imanentes ao problema. Diz a Enciclopédia coordenada por Denis Diderot: “como os romanos expulsaram seus reis, viram-se na obrigação de criar um ditador nos perigos extremos da república, como por exemplo quando ela era agitada por sedições perigosas, ou atacada por inimigos temíveis”. Suspensas as demais autoridades, o ditador tinha poder de vida e morte na cidade e no exército. “Mas como ele podia abusar de tão vasto poder, muito suspeito aos republicanos, sempre se tomou a precaução de limitar seu mando em seis meses”. Com Sila, a ditadura praticou crimes terríveis. Para autorizar tais vilanias ele se declarou ditador perpétuo, usurpando a força ditatorial. E comenta o enciclopedista: “soberano absoluto, ele mudou a seu talante a forma do governo, aboliu antigas leis e proclamou novas, se tornou senhor do tesouro público e dispôs despoticamente dos bens de seus cidadãos”. Cesar, vitorioso à custa de muita corrupção, inclusive financeira, retoma a ditadura perpétua e governa como senhor do mundo e da república. Termina da forma conhecida.

Para explicar os fatos da ditadura romana, particularmente as de Sila e Cesar, existem imensas bibliotecas, da Idade Média aos nossos dias. Limito-me a um comentário significativo da biografia publicada por Luciano Canfora. Ao indicar o banditismo assumido por Clódio, um tonton macoute da época, diz o historiador: “Com sua presença agressiva (de Clódio) na cena política da capital chega-se ao ponto extremo e se concretiza aquela degeneração parasitária do proletariado urbano de Roma, premissa não secundária da decisão de Cesar de desvincular-se da política tradicional popularis e de sua dinâmica. Quando as classes se decompõem na incapacidade não só de assumir uma função diretiva como também de adaptar-se à hegemonia de outros grupos, afloram fenômenos de parasitismo cego e de liderança de ação violenta que desqualificam, frequentemente por um tempo às vezes longo demais, a tradição democrática”. (Júlio César, o ditador democrático).

Para vencer sedições e “ameaças à ordem”, os ditadores Sila e Cesar, mas também outros aparentemente mais controlados até os nossos tempos, “colocam fim a uma época de anarquia mas igualmente ao ‘antigo regime’ que sua propaganda desacredita por todos os meios. (...) O ditador possui e impõe um programa geralmente bem marcado do ponto de vista político e social, o que traz uma ruptura violenta com o regime precedente. (...) Seu   principal meio de ação é a violência que se acompanha de um terror mais ou menos intenso. Os instrumentos de tal violência podem ser o exército, ou as milícias privadas” (Paul Petit, “Dictatures et légitimité dans “Empire Romain”, in Dictatures et Légitimités, org. por M. Duverger).

Os estudiosos do regime ditatorial, desde a era antiga, indicam um ponto importante, mas pouco percebido pelos que defendem aquele “remédio” para os males do Estado, a começar com a corrupção econômica e política. O regime ditatorial não é um meio para instaurar novas estruturas estatais e de sociedade. Ele é primordialmente conservador, quando não reacionário. Sua missão se define como negativa e tem como tarefa afastar o coletivo da possível destruição, daí a sua excepcionalidade e o caráter salvacionista de seu titular, individual ou de grupo. Tal aspecto é sublinhado por Spinoza, o autor ético da modernidade política e democrática: “Nos momentos de aflição, quando todos são tomados de terror pânico (...) os rostos se voltam para o homem cujas vitórias o colocam em plena luz”. (Tratado Político, capítulo 8) Os apavorados livram o ditador do respeito à lei. Na tarefa de manter um status quo, o possuidor temporário do mando absoluto destrói aquilo mesmo que ele supostamente deveria garantir. Um comentário excelente encontra-se no livro de Marie-Laurie Basilien-Gainche: État de droit et états d’exception.

A ditadura de 1964 tinha como emblema lutar contra a corrupção e a subversão. No caso da segunda, os governantes impostos travaram cruentas batalhas, com muitos atentados às liberdades democráticas e aos direitos civis. No caso da primeira, o Congresso e a política não deixaram de abrigar, durante toda a ditadura, notórios corruptos ou facilitadores da corrupção. A lista é longa, e pode começar com Paulo Salim Maluf, terminando em Edison Lobão e outros apelativos sonoros.  Basta olhar tais nomes que operavam a ordem política nacional, e ainda hoje acionam os mecanismos do Estado, para nos darmos conta da derrota programada, ocorrida no regime autoritário, na suposta ou real luta contra a corrupção. Buscar uma ditadura para destruir formas corruptas é tarefa duplamente perigosa e inútil. Primeiro, se o regime foi idealizado para manter a lei e a ordem vigentes, nos casos brasileiros do século XX a lei e ordem foram mantidas, com todas as suas iniquidades, irmãs gêmeas da corrupção. E o regime de força, dada sua própria natureza negativa, não tinha legitimidade nem condições objetivas para edificar novas formas de Estado e sociedade.  Décadas de regime autoritário não produziram formas melhores de governo, de controle político, de justiça e cidadania. Quando acabou o Estado ditatorial, pelo menos temporariamente, o país estava na mesma, ou pior, do que antes de sua instauração.

Ditadura e golpe de Estado formam um todo coerente. No século XX ocorrem inúmeros golpes de Estado, produzidos por motivos ideológicos, religiosos, políticos. Na madrugada, tanques de guerra tomam as ruas. Estações de rádio e televisão transmitem informes do governo ameaçado. O legalismo silencia e surgem proclamações dos que desejam o poder. Música patriótica compõe o apelo emocional ao povo. Caídos os dirigentes antigos, os novos interrompem os direitos públicos para limpar a pátria de toda corrupção, vencer os inimigos. “Se eles fossem vitoriosos, fariam mais ou pior do que efetivamos”, a frase modula o discurso dos novos palacianos.  Poucos países saíram de semelhante dança macabra aptos para a democracia e puderam confiar em técnicas políticas ou jurídicas aptas a produzir um Estado onde exista o convívio entre diferentes opiniões.

O modelo acima deixa na sombra que o golpe de Estado é mais sutil do que a intervenção das casernas. Um golpe pode ser incruento e não suspender todos os direitos. Caso se efetivem mudanças micrológicas na ordem legal e de governo, com pequeno acréscimo ou subtração nas leis, o seu efeito é tão desastroso para a democracia quanto um “pronunciamento” armado. Somadas, as micro-intervenções criam rupturas no direito público e privado, o que gera medo e desconfiança geral frente às instituições.

Em Gabriel Naudé encontra-se o esboço dos golpes modernos. As Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1639) ordenam um modelo a ser observado e temido pelos democratas. Segundo Naudé, “o bem e a utilidade pública vêm antes da utilidade particular”. Os golpes definem “atos extraordinários que os príncipes são constrangidos a executar contra o direito comum, quando os negócios se tornam difíceis ou desesperados, sem observar nenhuma ordem ou forma de justiça”. No golpe “a tempestade cai antes dos trovões, a execução precede a sentença, (...) um indivíduo recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando se imaginava seguro, um terceiro recebe o golpe que não esperava”. O governante que perdeu é punido e depois sentenciado pelos vencedores.

Foi o que ocorreu com o Ato Institucional n.º 1 (AI-1). Aposentadas as noções de legitimidade e de soberania vigentes, o texto proclama: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. (...) Ela edita normas jurídicas sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.

No Ato institucional de número 1, fala-se da onipotência trazida pelo poder constituinte. É impossível compreender aquele texto, que instaurou a ditadura de 1964, sem ler os trabalhos de Carl Schmitt, teórico frequentado por Francisco Campos, o pai da Polaca e dos Atos institucionais, do primeiro ao quinto. “A ditadura soberana é a comissão da ação incondicionada de um poder constituinte”, adianta Carl Schmitt no seu tremendo A Ditadura, no capítulo intitulado “O conceito de ditadura soberana”.  Diante de notícias como a defesa do golpe por um general da ativa, algo que necessariamente exigirá um regime de força, é aconselhável ler com cautela e atenção redobrada o citado livro-chave de Schmitt. Tal exame vale bem mais do que a frequência às redes sociais. Em Schmitt, temos a trilha de nosso destino, tal como se definiu no século XX e como poderá ser retomado no século XXI. Finalizo: não raro, a ameaça de um golpe dos quartéis serve para ocultar os golpes de Estado mais letíferos. Hoje, no Brasil, os golpes se condensam nas mudanças das leis, como a da previdência, trabalhista, direitos ecológicos e humanos. Além, claro, dos golpes definidos pela “reforma política”.  Com medo ou por amor aos tanques, muitos aceitarão os golpes preparados sine ira et studio pelos corrompidos palacianos. O resto é silêncio.

 

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