Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Os imigrantes e a Geni

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Ilustra: Luppa SilvaO que fazer diante da imigração é um tema quente nos Estados Unidos, como se pode ver pelas invectivas de Trump, em especial sua ideia rocambolesca do novo muro nas fronteiras do México.

Trump não faz tais ataques aos imigrantes por conta de sua instabilidade emocional, já tida por alguns como razoável motivo para interdição, mais do que impeachment. O problema é que suas piruetas verbais correspondem a sentimentos e ressentimentos profundamente engastados na sociedade americana, em especial naquilo que se tem chamado de “White working class”, os brancos trabalhadores que estão, cada vez mais, assombrados pelas incertezas do desemprego, da perda de cobertura de saúde, de hipotecas impagáveis e aposentadorias miseráveis.

Os imigrantes são ao mesmo tempo uma presença inarredável e um fantasma que se quer ignorar. Eles inundam as grandes cidades americanas – e muitos dos serviços são impensáveis sem a sua força de trabalho. Um filme de Sergio Arau – A Day without a Mexican – mostrou com humor cáustico uma cena da Califórnia. Mas poderia ter estendido o julgamento a NY ou Miami, na costa leste.

O “fenômeno” da imigração não é, exatamente, algo novo na sociedade norte-americana. Os Estados Unidos (como o Novo Mundo em geral) são um país de imigrantes “empilhados” por ondas. Um estudo de Alejandro Portes e Rubén G. Rumbaut (Immigrant America : a portrait, University of California Press, 2014) traz uma imagem reveladora:

Imagem: Reprodução

Figura – Evolução dos estrangeiros residentes nos Estados Unidos | Dados do Censo.


Repare: esses são os imigrantes legais. Para os ilegais, temos apenas estimativas. E elas são acachapantes. E devem ser maiores agora do que eram antes, nas vagas do começo do século XX. A “terceira onda” de imigração tem fontes fortemente latinas – México, América Central, Caribe. A proporção de ilegais deve ter aumentado pela maior facilidade de transporte – e pela maior vulnerabilidade da “porta”. Parece mais fácil entrar nos Estados Unidos pela fronteira do México (ou pelas barcas do Caribe) do que atravessando o Atlântico.

Veja mais abaixo uma representação gráfica da origem dos imigrantes. É uma imagem que adaptei do Atlas de Estados Unidos – Paradojas del Poder, de Philippe Lemarchand.
 

Imagem: Reprodução

Os imigrantes do período 1880-1920 vinham de países pobres, tinham baixa escolaridade, não falavam inglês. Mas foram se encaixando nos empregos urbanos mais elementares. Seus descendentes foram “subindo”, em geral incorporados na economia manufatureira que crescia. A terceira geração dessas famílias já supunha, de partida, a casa própria, o emprego estável, o automóvel e a faculdade.

Os novos imigrantes, estes da nova virada de século, não são tão diferentes. Mas o mundo em que se inserem é outro. Não chegam mais a um país em desenvolvimento, tomando espaço no mundo. Desembarcam em um país com alguns sinais de esclerose, tentando manter a frente diante de competidores cada vez mais fortes e diversificados.

Aos trancos e barrancos, com grande dose de informalidade, os novos imigrantes encaixam-se nos empregos de baixa qualidade. Mas não parecem ter a mesma perspectiva de ascensão que tinham seus sucessores, aqueles da outra virada de século.

Os nativos – e sobretudo os empregadores – os veem com certo desdém, para dizer o mínimo. Não os apreciam, mas não podem viver sem eles, por um motivo simples: eles fazem tarefas que outros rejeitam.

A classe média também tem esse duplo enquadramento. Tire os imigrantes do mundo dos serviços – os preços subiriam tremendamente. Eles são uteis desde que silenciosos e praticamente invisíveis. Um dia sem mexicanos era esse retrato do caos latente.

Os chicanos na Califórnia têm uma longa tradição de trabalhar por muito pouco e voltar para sua terra. Mas, com o passar do tempo, também foram ficando um pouco e ficando aos poucos. Eram de certo modo acolhidos nesse duplo enquadramento cômodo. Uma “hospitalidade” conveniente.

O cenário mudou drasticamente nas duas últimas décadas do século XX. Fábricas fecharam e seguem fechando, deslocam-se para além-mar (ou para o México!), empregos rareiam também nas lojas e bancos. Os americanos percebem cada vez mais que o que estava ocorrendo não é aquele famoso ponto baixo de um ciclo – mas o fim de uma era. Não vai haver uma retomada “clássica”. A recepção aos chicanos – aquela ambígua “hospitalidade” – transforma-se em ressentimento, ódio, desconfiança. Candidatam-se a bode expiatório, como Édipo-Rei em Tebas. Devem ser expelidos para que a cidade se salve da peste.


Dramático? Então vejam o relato do estudo já citado de Portes e  Rumbaut:

"Nos primeiros anos do século XXI, o Condado de Maricopa, Arizona, não era um bom lugar para morar, se você fosse estrangeiro e de pele morena. Um filho de imigrantes italianos aposentado, que trabalhara na Drug Enforcement Administration, havia virado xerife e desencadeara uma verdadeira campanha de terror contra os imigrantes latino-americanos, com o objetivo de tornar-lhes o condado tão inóspito quanto possível. O Xerife Joe Arpaio foi entusiasticamente instigado por um eleitorado branco, composto em grande parte de aposentados de Estados do Norte, que não conseguem ver qualquer contradição entre o fato de contratarem mexicanos e guatemaltecos como babás, empregadas domésticas e jardineiros e a perseguição à qual o Xerife Joe os sujeitava"

Um observador mais distante pode lembrar que, guardadas as muito devidas proporções, esse não é um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos. Certamente lembraria de árabes na França ou turcos na Alemanha. Ou... não faltam sugestões, pois não?

Há quem, no Brasil, olhe para a trajetória americana – ou para aquilo que pensam ser a trajetória – e nela veja um espelho para o futuro do Brasil. Sorry, não vai rolar. A imagem é frequentemente distorcida e estereotipada. E a ideia de replicá-la é miragem. Mas talvez, em algum sentido menos sóbrio, essa expectativa tenha suporte. Em 2006, um importante líder conservador, Patrick Buchanan, lançou um livro-alarme em que há uma passagem que pode nos interessar:

"Perto de 2050, uma Europa despovoada terá sido invadida por africanos e árabes irá e se assemelhar mais à Bósnia e a Beirute de hoje do que a Europa de Churchill e de Gaulle. Em 2050, a América terá se tornado um conglomerado multirracial, multiétnico, multilíngue, multicultural – um Brasil balcanizado de 420 milhões de habitantes, uma torre de Babel, uma réplica do Império Romano depois que os godos e vândalos passaram por cima dele. State of Emergency - The Third World Invasion and Conquest of America, Thomas Dunne Books).

Em certo sentido, o futuro já chegou. Parece que já temos aqui no Brasil balcanizado uma razoável audiência para esse tipo de mensagem.

 

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