Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

E a escola, o que é? E como deve ser?

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Ilustra: Luppa SilvaJá mencionei esse fato em outras ocasiões. Mas vale a pena explorar um aspecto menos notado. Em 1983, em Washington, o governo Reagan patrocinou a aparição de um documento muito importante para sustentar seus projetos de educação  – A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform.

O texto final era resultado de um trabalho de alguns meses, de uma comissão nomeada pelo Secretário de Educação. Repare na frase do parágrafo anterior: o relatório era importante para sustentar projetos de Reagan, não para subsidiar o desenho dos projetos. Não é exagero afirmar que a comissão tinha a resposta antes de formular a pergunta: as escolas estavam falhando na sua tarefa essencial e precisavam de uma chacoalhada disciplinar.  Essa era a conclusão pré-concebida. A “Comissão de excelência” que assinava o estudo era composta de 12 administradores, 1 empresário do comércio, um químico e um físico, um político profissional, um ativista conservador, um professor. Deixava de incluir outros potenciais “interessados”: estudantes ou egressos, famílias de estudantes, profissionais do campo (assistentes sociais, psicólogos, orientadores educacionais), sindicatos de professores, professores em atividade, acadêmicos estudiosos do tema.

A abertura do texto parecia abertura de filme de terror ou propaganda da Guerra Fria. E sua mensagem fundamental preparava os leitores-cidadãos para que aceitassem “políticas heroicas” na reforma educacional. 

O texto começava assim, em voz cavernosa: uma tenebrosa força inimiga está tentando destruir nosso país, solapando as bases de sua existência, as nossas escolas. Elas estão mergulhadas numa “crescente onda de mediocridade”. Afinal, estabeleciam os autores, a educação era o elemento fundamental da segurança e da competitividade do país – fontes da prosperity, security and civility. Mas a força inimiga, diziam, não é uma potência estrangeira: “somos nós mesmos”. Paranoia em avançado grau.

A resposta para o alegado drama era um “arrocho”, um choque de rigor: concentrar as escolas no “básico acadêmico”. E o próximo passo, claro, seria... a constante vigilância, verificações metódicas dos resultados. Enfim: testes, testes, testes. E um conjunto de penalizações e bônus, conforme o desempenho nos testes.

O relatório foi sobejamente utilizado para justificar não apenas uma ofensiva contra as escolas públicas, atacadas como inoperantes e ineficientes. Ele frequentemente sustentava as políticas alternativas, que impunham uma determinada forma de avaliação “objetiva” e padronizada. Essa avaliação condicionaria repasses de recursos públicos e, mais ainda, sancionaria a adoção de reformas que privatizavam controle e gerenciamento, reformas “mercado alike”. Como iriam mostrar análises críticas dos resultados, a “solução” gerava precisamente o contrário do que se alegava pretender. As escolas, longe de melhorar, produziam, precisamente, o mal que se buscava exorcizar. Com o adicional efeito de induzir professores a treinar para testes, utilizando para isso boa parte do tempo que, de fato, subtraíam ao ensino, propriamente dito. E não era tão surpreendente. Em suma, á paranoia já visível no estilo do diagnóstico se somava à esquizofrenia no tratamento.

Essa cultura de testes padronizados já teve defensores ilustres, como a pedagoga Diane Ravitch, quando ela assessorava o presidente Bush (o pai). Anos depois, Ravitch deu sua mão à palmatória (para usar a metáfora adequada) e se dedicou a uma crítica demolidora dessa prática (e da teoria que a sustenta). Veja-se, por exemplo, seu famoso livro Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano- Como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação (publicado no Brasil pela Editora Sulina, 2011).

Esse debate é muito rico – e não apenas para entender os problemas da educação americana. Um aspecto menos notado é levantado por uma outra estudiosa, cujo argumento traduzo abaixo, pedindo perdão pelo tamanho do texto:

“Em última análise, a tarefa do professor excelente é estimular as pessoas ‘aparentemente comuns’ a fazer um esforço incomum. Em que os relatórios sobre a reforma da escola têm contribuído para esse objetivo? Em primeiro lugar, surpreendentemente se dá pouca atenção às ‘pessoas comuns’ nos relatórios de reforma escolar. A conclusão direta que deles sai é que a crescente onda de mediocridade é produzida por um número embaraçoso de pessoas comuns. Professores das faculdades são aconselhados a selecionar os melhores candidatos, faculdades são incentivadas a subir o padrão exigido para ingresso e o governo federal é convidado a oferecer bolsas de estudos para atrair para o ensino aqueles que se formam no nível superior. Não se fala muito, nos relatórios, sobre como estimular o esforço incomum de pessoas comuns com as quais, parece, estamos nos confrontando nas escolas e na maioria das faculdades. O problema difícil não é o de identificar os vencedores; é o de tornar vencedores as pessoas comuns. Este é, afinal, é o grande objetivo da educação. Ainda assim, historicamente, na maioria das épocas em que se enfatiza a excelência, a educação foi convertida na atividade de selecionar vencedores, ao invés de criá-los”. (Patricia K. Cross - Societal Imperatives: Needs for an Educated Society).

Em suma, aquilo que Cross tem em vista é saber que papel deve ter a escola e como ela se enquadra em um modelo de ordem social, de escolhas coletivas. Salvo engano, é algo que toda escola ´– inclusive nossa universidade – precisa definir para si mesma: o que eu quero ser?

 

 

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