Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Quando uma empresa imitava a universidade e não o contrário

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Foto: ReproduçãoEstudante de Física, nos idos dos anos 1980, eu tinha por hábito, desde o início da graduação, vasculhar a biblioteca do Instituto de Física da Unicamp. Em pouco tempo sabia quase tudo que tinha por lá que contava coisas sobre as quais no começo não entendia nada. Lembro-me de um dia em que me deparei com uma publicação que me marcou. Não era um artigo e sim um anúncio, que dizia mais ou menos assim: “nós pagamos o Dr. Fulano de Tal (era um nome asiático, pelo que me lembro) para que não pense para os outros”. Embaixo a imagem de um homem (provavelmente o Dr. Fulano de Tal) dormitando recostado a uma árvore. Abaixo da imagem, o logotipo do Bell Labs, uma empresa. A página (que eu não consegui achar novamente, a imagem, abaixo, que acompanha a coluna, é de outro anúncio da mesma empresa), produto de marketing e não de Física, me chamou a atenção pela importância dada a pensar e não a patentes, por exemplo. Obviamente, o Dr. de Tal era pago não só para não pensar para os outros, mas para pensar para a empresa. Fascinado na época, hoje o anúncio me evoca o que deveria ser a centralidade de uma universidade: pensar. Quanto aos laboratórios Bell, livro recente sobre sua história parece conectado também àquela peça de propaganda, pois o título é “A fábrica de ideias: Bell Labs e a grande era da inovação americana”, de Jon Gertner [I]. A inovação tem sua origem nas ideias. Esses laboratórios da gigante de telecomunicações AT&T era para minha geração uma meca para realizar o pós-doutorado. Além disso, físicos brasileiros que lá estavam, ou por lá tinham passado, fizeram parte da criação do Instituto de Física da Unicamp. Mas o que foram os Laboratórios Bell e como devia ser esse lugar de pensar (antes de inovar)? O sistema Bell de telefonia era composto no início do século XX de dois braços empresariais, a companhia American Telephone & Telegraph (AT&T) e a Western Electric Company, o braço manufatureiro do sistema. No início dos anos 1920, a atenção passou a se voltar para a exploração de áreas fundamentais da ciência para o desenvolvimento do futuro dessa indústria, ou seja, perspectiva de longo prazo. Assim, em 1925 foi criada uma entidade separada, o Bell Telephone Laboratories, totalmente dedicada para tal pesquisa – fundamental e de longo prazo – que se tornou o maior laboratório de pesquisa industrial do mundo [II]. Lá foi inventado o transistor e, na mesma época dessa invenção, um matemático do laboratório desenvolveu a teoria matemática da informação. Ao longo de várias décadas foram desenvolvidas por lá pesquisas que valeram prêmios Nobel, mas também foram desenvolvidos sistemas operacionais e linguagens de computação, além de arte digital e multimeios. A lista é enorme e pode ser apreciada nos links da nota [II] ou na Wikipédia [III].

Foto: Reprodução

Ainda que fascinante, o inventário de realizações dos Bell Labs não é o objetivo desta coluna, e sim o ambiente que propiciou essa lista. Os sítios do mundo trazem muitos relatos e reminiscências e seguem alguns. Man Mohan Sondhi em seu relato [IV] destaca a “atmosfera acadêmica do lugar, algo que eu não imaginava em uma organização industrial.” Outro aspecto lembrado era o “ambiente totalmente livre”, bem como “a diversidade, outro aspecto notável nesses laboratórios”. Segundo Sondhi, não eram contratados especialistas já formados nas diferentes especializações, “uma abordagem fortemente contrastante com a concepção moderna de contratar pessoas que pensam no sucesso imediato”. Ainda segundo esse engenheiro elétrico e físico indiano, é importante mencionar outra dimensão dessa diversidade: “era reconhecido que as pessoas tinham várias motivações para a pesquisa. Alguns buscavam resolver problemas, outros de realizar descobertas fundamentais ou uma contribuição duradoura para a sociedade, bem como aqueles que queriam mesmo inventar produtos de sucesso comercial”. “Liberdade de escolher a linha de pesquisa que desejasse era um dos aspectos mais sedutores para se trabalhar ali.” E mais: “eu posso dizer, sem hesitação, que em meus 39 anos lá, nunca me foi pedido ou imposto trabalhar em um problema específico.”

Existem outros relatos e registros de história oral de cientistas que lá trabalharam, trazendo também dissonâncias às impressões de Sondhi. A leitura, um exercício algo “etnográfico à distância”, vale a pena: “Bell Labs, um paraíso acadêmico?” [V] e “como era trabalhar no Bell Labs? ”[VI]. Um relato, de outro sítio, eu ainda destaco: trata-se de uma entrevista de Steven Chu (prêmio Nobel de Física de 1997), que lá trabalhou e hoje está na Universidade de Stanford [VII]. Na entrevista [VIII], Chu relembra seu chefe no Bell Labs dizendo à sua chegada: “Steve, você pode fazer o que quiser. Não precisa nem ser relacionado com Física, só não se dedique à física de partículas, pois aí os acionistas talvez não gostem”. Acrescenta ainda que seu chefe recomendou que “não faça nada imediatamente. Gaste seis meses. Converse com as pessoas pelos laboratórios e mantenha a mente aberta”. A entrevista segue, destacando “a liberdade no melhor sentido, mas em um ambiente que levava a novos níveis de entendimento.” O ambiente incluía cinema e longas conversas na cantina. Transcrevo ainda um trecho final. “Nos laboratórios Bell nós não tínhamos grupos. Se você quisesse fazer algo que necessitasse mais do que uma ou duas pessoas, teria que trabalhar com outras pessoas, construindo colaboração no sistema”.

Numa resenha do livro “A fábrica de ideias”, Andrew Gelman [IX] destaca o que ele chama de principal argumento do livro: “hoje em dia é ideia aceita que inovação e competitividade estão intimamente ligadas. Mas a história dos Bell Labs demonstra que a verdade é na realidade bem mais complicada... ambientes criativos que fomentam uma rica troca de ideias são bem mais importantes em produzir novas percepções do que as forças de competição.”

Essa “era de ouro da inovação” começou a esmaecer nos anos  1980 com a quebra do monopólio da ATT&T. Esse é o lado perverso, era  o monopólio que garantia o financiamento de uma pesquisa livre e voltada ao longo prazo. A modificação paulatina para uma visão de pesquisa mais restrita e orientada e de visão mais imediata é descrita no artigo “Mudança na cultura de pesquisa das indústrias dos EUA” de Roli Varma [X].

Existe um lugar natural para o fomento desse ambiente criativo com todas as suas vantagens, que a história dos Laboratórios Bell comprovou, mesmo que com menos recursos. É uma pena que as universidades parecem tentar imitar as empresas. Não como aquela e sim como as outras.

 


 

[I] The Idea Factory: Bell Labs and the Great Age of American Innovation Jon Gertner 2012 Penguin Press

[II] https://ethw.org/Bell_Labs

[III] https://pt.wikipedia.org/wiki/Bell_Labs

[IV] https://ieeexplore.ieee.org/document/1657810/

[V] http://berkeleysciencereview.com/bell-labs-an-academic-paradise/

[VI] https://www.quora.com/What-was-it-like-to-work-at-Bell-Labs

[VII] https://physics.stanford.edu/people/steven-chu

[VIII] http://globetrotter.berkeley.edu/people4/Chu/chu-con3.html

[IX] http://www.stat.columbia.edu/~gelman/research/published/bell.pdf

[X] http://www.unm.edu/~varma/print/STHV_Research%20Cultures.pdf

 

 

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