ORFEU
Que
pergunta deverei fazer
Ao atravessar a sombra?
O
que irei ver ao olhar o invisível?
Quando
inevitavelmente olhar para trás
For mais convidativo,
Que
dor poderei suportar,
Ao perdê-la pela segunda vez?
Onde
estará Eurídice? Nas sombras?
Ou nos céus?
Nas
palavras que tornarei a cantar?
Ou
neste olhar que a vê entre as coisas
E em todo lugar.
RECEITA
CHINESA
Quem
ama faz do mundo o seu corpo
Tao
Um
dia, a sós com o coração
A
virtude de silenciar dirá
Que
a máscara não perdura –
E
cai
Ou
se funde ao próprio rosto.
É
que a verdade não se diz,
Ela
por si se revela.
Decide
o tempo
A
amadurecer a razão
Quão
útil pode parecer à dor.
A
receita chinesa é bem antiga:
“não
nasce o fruto
sem
antes morrer a flor”.
E
QUANTO MAIS ME ESQUECERES
E
quanto mais me esqueceres,
Mais
estarei aos teus olhos
E
quando fores embora
Serás
amada como não foste outrora.
Que
o amor excede no homem
O
que há de mais forte
A
memória ou o esquecimento
Que
podem ser a mesma coisa.
Teu
olhar diz o que diz o abismo
Desses
olhos que atravessam os rios
E
valem a distância das estrelas
E
os raios, mesmo sendo
montanhas
de gelo, o estranho gozo.
Daquela
solidão extrema ou
esse
fogo, que, no verso de Dante,
em
si, arde, mas não queima:
“Io
veggio l’acqua, io veggio il foco”.
POEMA
Porque
escrevi teu nome na areia
Como
pode esta frase ser eterna?
Que
diante do mar vi recuar seu infinito de azul
e
espuma.
Quem
ama o mortal corpo ama a metade
Quem
ama a alma falta-lhe
toda
a outra parte, de carne.
Também
a alma é pequena
Também
Deus sabe encolher
As
garras e as guerras
Também
o corpo sabe prolongar
Os
dedos e as guelras
Ah,
que rima mais pobre – que agonia
Será
que Deus sabe fazer versos,
Além de guerras?
NIETZSCHE
No
ponto mais alto
Não
existe mais caminho,
Só
o retorno
Ou
então o precipitar:
Jogar-se
ao vento
Que
não mais soprará.
Nada
mais efêmero
Que
a humanidade
—
este estar lá embaixo e gritar:
Amo
a sombra de onde
Posso
tudo observar.
Ouço
o estrondo:
É
Deus que me quer desafiar
MOMENTO
Na
ocasião na qual te decides
Escolher
uma palavra
Para
riscar o papel,
Leia
isto, antes que reste
Só
a saudade
De
um verso abandonado
—
Para o bem da humanidade,
não
deixes vir a verdade
ou
a mentira,
antes
da poesia.
RIOBALDO
& RIMBAUD
—
Sou um rio.
—
Eu, um barco.
—
E quem escreve?
—
A mão que empunha o arco.
—
Sou a água.
—
Não posso bebê-la.
—
Capinar sozinho, debulhar estrelas...
Onde estiveste, depois que escreveste?
—
Nas maresias, nas maresias...
Ah,
se eu pudesse mesmo gostar de Diadorim, o sorriso
dele
me dobrava como uma curva de rio, agora sei porque
te
chamas Rio... o Do-Chico...
—
Êpa, o meu Diadorim é meu.
—
Não é, é a tua neblina.
—
Já sei, não recitar em francês é um crime:
Par
délicatesse
J’ai
perdu ma vie.
—
Compadre, a gente viemos do inferno, duns lugares
inferiores,
deixe os leitores... foi nessas veredas
que
Diadorim morreu.
—
É, deixe de pacto, vamos vender as nossas armas.
—
Antes, quero os cabelos de Diadorim.
—
Tome esta tesoura de prata e esta caneta, escreva...
—
Diadorim não morreu, virou o meu sol...
TRÓIA
ESTÁ EM CHAMAS,
anoitece.
Espadas
em luto batem no teu coração a centelha
do
guerreiro na arena da ex-tarde
o
súbito cavalo de longas labaredas
(Tu
estás entre os deuses.
De
palavras
não
aceitas o meu presente)
FAUSTINO
Maior
errância
Que
a palavra
Não
há
Noite,
cavalos, sinos.
A
prova é a signi-
ficância:
Oscilar,
esse
Infante
couraçado
ar.
PLATERO
E ROCINANTE
—
O que levas, Rocinante, um homem ou um sonhador?
—
Não sei. Sei que ele é como eu sou. Melancólico e triste, e me diz
que é o meu senhor. Eles dizem que são amigos como eu de Ruço sou.
Talvez um pouco de amizade possa ser bom. Temos em comum a amizade,
o que é um belo tema para um poema e para a vida.
—
E tu, Platero porque és palrador?
—
É verdade, conversamos enquanto comemos e nossos amos nem percebem
o que dizemos.
—
Se soubessem, nos matariam, pois só rimos e rimos dessas ridículas
criaturas. Por isso evitamos a palavra. Não há nada mais doido do
que querer dizer as coisas por meio desses grunhidos e desenhos.
—
Até Sancho é louco ao aceitar a Baratária ilha.
—
Tanta loucura para tão pouca criatura.
—
Enfim, a obra é melhor que a vida.
—
Sem dúvida, e o caminho está entre a razão e a loucura.
TODOS
OS VERBOS, TODOS OS VERMES
Compreender
é uma vontade como a morte é uma compreensão. A morte nos empurra
a entender que há o silêncio e o musgo, e desse vazio que se move
o desejo de ser que é o desejo de saber, como um verbo. E os vermes
estão cheios de desejos. E ser conjuga-se com todos os verbos. O
que falam os verbos? Senão falar, fazer, dizer, o que fazem os vermes?
Bem... isso ainda começastes a compreender. Tudo bem, há mais frases
para dizer do que todas que já foram escritas. E isso é possível,
basta gritar para atravessar aquele rio, e perguntar ao além se
dá vau. Todos os verbos fazem o homem e nenhum será ele. A escrita
é o simulacro de Deus. É um verme como o verbo que apodrece em ruído
e cheiro nauseantes, da nave, essa nau, a podridão, que nos leva
de onde viemos, o lugar do Nenhum.
É
O VENENO QUE DÁ A VIDA
Was
bleibet aber, stiften die Dichter.
Hölderlin
É
o veneno que dá a vida
É
o abismo que dá as asas
É
o medo que dá a crença
É
a crença que dá o viço.
É
a morte que dá a vida
É
a vida que dá a obra.
É
a realidade que dá a verdade
É
a verdade que dá conta disso.
É
a palavra que dá o mundo
É
o homem que se adianta
É
o poema que dá o troco
É
a poesia o que aviva
É
a palavra que dá e tira
É
a poesia o que fica.
PARA
UMA MULHER DA ILHA DE LESBOS
Casou-se
com uma Hamadríade e ao ir ao mundo de baixo: a natureza não poderá
lhe seguir. O amor é quem manda na morte
Terá
que ir e voltar.
O
amor é mais uma vez, e o que retorna não é perfeito.
É
preciso olhar para trás
O
sol esquenta. A lua umedece
Nada
peças a quem já não ama
A
poesia decifra os deuses
É
falso o que se escreve. É verdadeiro o que se lê.
À
TARDE, À SOMBRA
POR
CAUSA DO SOL nos teus olhos
Detiveste-me
em um breve
como
se chegasses da jornada dos girassóis.
E
eu, o menor dos pássaros,
Sozinho,
Gritava
contra a ventania.
EPITÁFIO
Todo
poeta escreve seu epitáfio,
Este
é o de Robert Burns por John Keats:
“Tudo
é fria beleza; e nunca finda a dor”.
Nas
invisíveis asas da poesia,
foi
a música quem lhe segredou,
esse
hino que ao fundo vai se perdendo,
e
se repetindo, partindo-se, à estranha sorte,
do
sino que retorna para quem o repicou:
o
poeta, assim como o rouxinol,
não
nasceu para a morte.
QUANDO
EU DISSE NA FRONTEIRA
Para
o meu velho Whitman
Quando
eu disse na fronteira que era brasileiro, não me envergonhei das
perguntas que me fizeram e nem tive medo do preconceito de me verem
melhor do que eles. Tive até a audácia de responder na língua deles
que todos nós somos estrangeiros e que eu estava a caminho do que
era meu, e do que sempre me esperou do outro lado da fronteira.
PARA
TE DESPERTAR MAIS CEDO
Fiz
isto para que não leias. Para que não me encontres em lugar nenhum.
Para que saibas que sou mágico. Que escrevo com as maçãs derrubadas
pelos relâmpagos. Que decifro o espelho verde daquele rio. Que conheço
o caminho das aves que migraram para o oeste do teu coração. Eu
não estou aqui e não sei do que dizer. Não sei porque te provoquei
esta leitura. Talvez para te despertar mais cedo. Sei pouco de ti.
Sei apenas que estás aqui.
Soul
and body have no bounds:
To
lovers as they lie upon
W.
H. Auden
DE
SUOR E SONO
Pouco
é
o contento
à música
dos corpos
Ao
amor tudo é permitido
Da
guerra
ao pacto
um amor pode valer tudo isso
ou quase isso
mas não menos
que o ato
PARA
QUE NÃO CANSES
Isto
é para que não canses
de
procurar o que parece não existir
Isto
é para que não chores
porque
somos dos sonhos
que
só existem com a memória
Isto
é para que não temas
os
teus passos na escuridão
o
teu sorriso franco de estrela miudinha
e
o teu mais novo abrigo
que
repousa em meu peito.
ONTEM,
QUANDO VOCÊ FOI EMBORA
pude
entender a beleza do ocaso
a
incerteza do dia quando morre...
O
caminho para a tua casa
era
pular de estrela em estrela
como
no poema do Quintana
DEPOIS
DO TROVÃO
Ich
hör' es sogar im Traum.
Heine
Depois
do trovão o que haveria de falar
Cala-se
o canto e o pássaro
Que
nem sabe mais o que é voar.
Geme
o trovão, rola o tambor pelo fim
Ainda
há dor no céu
A
dor é também o poder
Para
o grito que vem da altura
Não
valem mãos.
E
elas convencem-me da solidão de Deus
Se
do alto vem o lamento
Debaixo
não pode subir.
CRISTINA,
Emparedados
a
vida não é um presente.
Para
Ana C.
POEMAS
HORACIANOS
I
O
tempo vai vencer, Lidia,
E
onde estarás quando escurecer?
Não
haverá mais força para o canto
E
à terra se inclinará a rosa.
O
tempo vai dizer, Lidia,
Se
teu esforço compensou
Em
tua fronte o Louro
Ou
a dor que nos amadurece
Em
seu decidido vigor.
A
queixa enfraquece o ânimo
e
o canto fortalece –
Mas,
saibamos que a todo fim
O
silêncio resta
Como
a esta palavra
Em
tuas mãos como a leitura mais suave
Ou
em tua boca como o roxo vinho.
II
Como
a rosa que espera a dor
E
é matutina
Assim,
a beleza mora em ti
Como
a melancolia
(Morro
eu, Lidia, por um verso
agora
que dormes
sob
o cansaço da lua fria).
Ensina-me
uma lição a natureza:
a
chuva não cai toda de uma vez.
Assim,
aos poucos eu
Reporto-me
ao peito onde moras
Nesse
grito, como um brilho
Que
mais não é a dispersão de estrelas
Também
disperso fulgirei
Pelo
teu sorriso, que é um sol pequeno,
Como
um deus atento, resumirei.
Dá-me
o que me tomas
Dá-me
o que me queres
Em
todos o mesmo desejo
Por
isso asseguro que a dor
É
um limite como o prazer
Mais
afoito – e eu no meio,
Sozinho
vou, mas contigo.
III
Não
confia nada a ninguém, Cloe,
Que
nada dura na humana memória.
Só
o coração é sepultura
Do
que sentes na dor ou na ventura.
Portanto,
evita o gládio
Dos
amores e toma
O
momento presente como verdade –
O
mais, a névoa baça
Como
a incerta esperança
Do
mesmo sol do passado
Dourar
as promessas do futuro.
Ao
tempo só pertence este segundo
Que
o perdes, Cloe.
Colheo-o
enquanto passa.
IV
Deponho
as armas, Lidia,
E
te venero – que me atinge
O
golpe mais fatal :
O
coração que livre quero.
Não
me perderei por outra
Breve
esperança.
Vem!
Que só irei repetir
Que
a ti é certo,
Meus
próprios cantos
Que
por ti são meus versos.
Deponho
o Louro, Lidia.
Se
de que adianta ter a glória,
Mas
não o Amor, em teu alvo colo,
Onde
mais feliz vivo
Que
o rei da Pérsia.
V
Não
devemos esperar por nada, Lídia,
Nem
pela morte, que é a nossa última perda,
Neste
momento
Em
que te encontro
Será
o meu último;
Portanto,
ficar contigo
É
só a alegria de agora
Porque
depois será memória,
Ou
esquecimento.
VI
Guarda
o teu coração,
Não
o reveles a ninguém,
Pois,
se o revelares
Já
não mais será teu.
O
coração é um segredo,
Onde
o medo ou o desejo
Se
abrem ou se fecham
Como
desejo ou como medo.
O
seu único defeito
É
não acatar a razão,
a
razão que do coração
não
sabe dizer não.
Guarda
o teu coração
Aqui,
perto do meu.
BRINQUEDO
O
amor me insiste em te convidar, Cloe,
Mas
ao lamento me inclino,
Como
a rosa que a terra chora.
A
verdade é a tumba,
E
o teu coração, o meu destino.
Assim
como o trigo é fruto da terra,
Mas
lhe é preciso o fogo
Para
ser pão,
Assim,
a palavra é fruto do corpo,
Mas
lhe é preciso o verbo
Para
ser grão.
Não
adianta entender o mundo
Com
poesia − esta é uma escrita
que
se sacrifica com a vida,
como
os deuses outrora exigiam.
Portanto,
Cloe, doe amor
E
viva a vida que esta é
A
melhor maneira de viver,
Como
uma criança vive
Com
seu pequeno brinquedo.
A
HORA, QUEM A ESCOLHE?
A
hora, quem a escolhe?
Podemos
adiar o momento em que morremos?
Quem
nos fechará os olhos para ver quem somos?
Quem
nos chamará para o conforto de dormir?
Se
morremos, não recusamos a morte.
Será
que o último exílio se parece com o paraíso?
Esse
indício de que o mundo foi concebido como arte,
Então,
─ que poeta é esse Deus que me reparte?
Um
quadro, um teatro, ou um livro
Para
o qual retornaremos como o derradeiro
Ou
o primeiro personagem.
A
hora, quem a escolhe?
Quem
a quer? Como o arbítrio,
Livre
até para não morrer?
Essa
ilusória opção
De
viver à espera do último segundo
Para
o qual não poderemos dizer
Sim
ou não.
SEMEAREI
O RIO
Semearei
o rio
Que
é o lugar
Onde
posso ter
O
verso que me escapa
E
o tempo
Que
não quer ficar
Semearei
o rio
Que
é o lugar
Onde
a morte
Detém-se
em
alguma parte
E
ligeiras, suas
Águas
movem
Do
tempo, a fria
Eternidade
Que
a deixarei contigo
Em
alguma margem.
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