SEMEAREI O RIO

— poemas —

 

Benilton Cruz [1]


ORFEU

 

Que pergunta deverei fazer

        Ao atravessar a sombra?

O que irei ver ao olhar o invisível?

Quando inevitavelmente olhar para trás

       For mais convidativo,

Que dor poderei suportar,

       Ao perdê-la pela segunda vez?

Onde estará Eurídice? Nas sombras?

       Ou nos céus?

Nas palavras que tornarei a cantar?

Ou neste olhar que a vê entre as coisas

       E em todo lugar.

 


 

RECEITA CHINESA

 

Quem ama faz do mundo o seu corpo

Tao

 

Um dia, a sós com o coração

A virtude de silenciar dirá

Que a máscara não perdura –

E cai

Ou se funde ao próprio rosto.

É que a verdade não se diz,

Ela por si se revela.

 

Decide o tempo

A amadurecer a razão

Quão útil pode parecer à dor.

A receita chinesa é bem antiga:

“não nasce o fruto

sem antes morrer a flor”.

 


 

E QUANTO MAIS ME ESQUECERES

 

E quanto mais me esqueceres,

Mais estarei aos teus olhos

E quando fores embora

Serás amada como não foste outrora.

Que o amor excede no homem

O que há de mais forte

A memória ou o esquecimento

Que podem ser a mesma coisa.

 

Teu olhar diz o que diz o abismo

Desses olhos que atravessam os rios

E valem a distância das estrelas

E os raios, mesmo sendo

montanhas de gelo, o estranho gozo.

Daquela solidão extrema ou

esse fogo, que, no verso de Dante,

em si, arde, mas não queima:

“Io veggio l’acqua, io veggio il foco”.

 


 

POEMA

 

Porque escrevi teu nome na areia

Como pode esta frase ser eterna?

Que diante do mar vi recuar seu infinito de azul

e espuma.

Quem ama o mortal corpo ama a metade

Quem ama a alma falta-lhe

toda a outra parte, de carne.

Também a alma é pequena

Também Deus sabe encolher

As garras e as guerras

Também o corpo sabe prolongar

Os dedos e as guelras

Ah, que rima mais pobre – que agonia

Será que Deus sabe fazer versos,

           Além de guerras?

 


 

NIETZSCHE

 

No ponto mais alto

Não existe mais caminho,

Só o retorno

Ou então o precipitar:

Jogar-se ao vento

Que não mais soprará.

Nada mais efêmero

Que a humanidade

— este estar lá embaixo e gritar:

Amo a sombra de onde

Posso tudo observar.

Ouço o estrondo:

É Deus que me quer desafiar

 


 

MOMENTO

 

Na ocasião na qual te decides

Escolher uma palavra

Para riscar o papel,

Leia isto, antes que reste

Só a saudade

De um verso abandonado

— Para o bem da humanidade,

não deixes vir a verdade

ou a mentira,

antes da poesia.

 


 

RIOBALDO & RIMBAUD

 

— Sou um rio.

— Eu, um barco.

— E quem escreve?

— A mão que empunha o arco.

— Sou a água.

— Não posso bebê-la.

— Capinar sozinho, debulhar estrelas...

    Onde estiveste, depois que escreveste?

— Nas maresias, nas maresias...

Ah, se eu pudesse mesmo gostar de Diadorim, o sorriso

dele me dobrava como uma curva de rio, agora sei porque

te chamas Rio... o Do-Chico...

— Êpa, o meu Diadorim é meu.

— Não é, é a tua neblina.

— Já sei, não recitar em francês é um crime:

Par délicatesse

J’ai perdu ma vie.

— Compadre, a gente viemos do inferno, duns lugares

inferiores, deixe os  leitores... foi nessas veredas

que Diadorim morreu.

— É, deixe de pacto, vamos vender as nossas armas.

— Antes, quero os cabelos de Diadorim.

— Tome esta tesoura de prata e esta caneta, escreva...

Diadorim não morreu, virou o meu sol...

 


 

TRÓIA ESTÁ EM CHAMAS,

anoitece.

Espadas em luto batem no teu coração a centelha

do guerreiro na arena da ex-tarde

o súbito cavalo de longas labaredas

 

(Tu estás entre os deuses.

 

De palavras

não aceitas o meu presente)

 


 

FAUSTINO

 

Maior errância

Que a palavra

Não há

 

Noite, cavalos, sinos.

A prova é a signi-

ficância:

 

Oscilar, esse

Infante couraçado

ar.

 


 

PLATERO E ROCINANTE

 

— O que levas, Rocinante, um homem ou um sonhador?

— Não sei. Sei que ele é como eu sou. Melancólico e triste, e me diz que é o meu senhor. Eles dizem que são amigos como eu de Ruço sou. Talvez um pouco de amizade possa ser bom. Temos em comum a amizade, o que é um belo tema para um poema e para a vida.

— E tu, Platero porque és palrador?

— É verdade, conversamos enquanto comemos e nossos amos nem percebem o que dizemos.

— Se soubessem, nos matariam, pois só rimos e rimos dessas ridículas criaturas. Por isso evitamos a palavra. Não há nada mais doido do que querer dizer as coisas por meio desses grunhidos e desenhos.

—  Até Sancho é louco ao aceitar a Baratária ilha.

— Tanta loucura para tão pouca criatura.

— Enfim, a obra é melhor que a vida.

— Sem dúvida, e o caminho está entre a razão e a loucura.

 


 

TODOS OS VERBOS, TODOS OS VERMES

 

Compreender é uma vontade como a morte é uma compreensão. A morte nos empurra a entender que há o silêncio e o musgo, e desse vazio que se move o desejo de ser que é o desejo de saber, como um verbo. E os vermes estão cheios de desejos. E ser conjuga-se com todos os verbos. O que falam os verbos? Senão falar, fazer, dizer, o que fazem os vermes? Bem... isso ainda começastes a compreender. Tudo bem, há mais frases para dizer do que todas que já foram escritas. E isso é possível, basta gritar para atravessar aquele rio, e perguntar ao além se dá vau. Todos os verbos fazem o homem e nenhum será ele. A escrita é o simulacro de Deus. É um verme como o verbo que apodrece em ruído e cheiro nauseantes, da nave, essa nau, a podridão, que nos leva de onde viemos, o lugar do Nenhum.

 


 

 

É O VENENO QUE DÁ A VIDA

 

Was bleibet aber, stiften die Dichter.

Hölderlin

 

É o veneno que dá a vida

É o abismo que dá as asas

É o medo que dá a crença

É a crença que dá o viço.

 

É a morte que dá a vida

É a vida que dá a obra.

É a realidade que dá a verdade

É a verdade que dá conta disso.

 

É a palavra que dá o mundo

É o homem que se adianta

É o poema que dá o troco

 

É a poesia o que aviva

É a palavra que dá e tira

É a poesia o que fica.

 


 

PARA UMA MULHER DA ILHA DE LESBOS

 

Casou-se com uma Hamadríade e ao ir ao mundo de baixo: a natureza não poderá lhe seguir. O amor é quem manda na morte

Terá que ir e voltar.

O amor é mais uma vez, e o que retorna não é perfeito.

É preciso olhar para trás

 

O sol esquenta. A lua umedece

 

Nada peças a quem já não ama

A poesia decifra os deuses

 

É falso o que se escreve. É verdadeiro o que se lê.

 


 

À TARDE, À SOMBRA

 

POR CAUSA DO SOL nos teus olhos

Detiveste-me em um breve

como se chegasses da jornada dos girassóis.

 

E eu, o menor dos pássaros,

Sozinho,

Gritava contra a ventania.

 


 

EPITÁFIO

 

Todo poeta escreve seu epitáfio,

Este é o de Robert Burns por John Keats:

“Tudo é fria beleza; e nunca finda a dor”.

Nas invisíveis asas da poesia,

foi a música quem lhe segredou,

esse hino que ao fundo vai se perdendo,

e se repetindo, partindo-se, à estranha sorte,

do sino que retorna para quem o repicou:

o poeta, assim como o rouxinol,

 não nasceu para a morte.

 


 

QUANDO EU DISSE NA FRONTEIRA

 

Para o meu velho Whitman

 

Quando eu disse na fronteira que era brasileiro, não me envergonhei das perguntas que me fizeram e nem tive medo do preconceito de me verem melhor do que eles. Tive até a audácia de responder na língua deles que todos nós somos estrangeiros e que eu estava a caminho do que era meu, e do que sempre me esperou do outro lado da fronteira.

 


 

PARA TE DESPERTAR MAIS CEDO

 

Fiz isto para que não leias. Para que não me encontres em lugar nenhum. Para que saibas que sou mágico. Que escrevo com as maçãs derrubadas pelos relâmpagos. Que decifro o espelho verde daquele rio. Que conheço o caminho das aves que migraram para o oeste do teu coração. Eu não estou aqui e não sei do que dizer. Não sei porque te provoquei esta leitura. Talvez para te despertar mais cedo. Sei pouco de ti. Sei apenas que estás aqui.

 


 

Soul and body have no bounds:

To lovers as they lie upon

W. H. Auden

 

DE SUOR E SONO

Pouco é

      o contento

         à música

               dos corpos

 

Ao amor tudo é permitido

 

Da guerra

               ao pacto

          um amor pode valer tudo isso

          ou quase isso

                   mas não menos

                      que o ato

 


 

PARA QUE NÃO CANSES

 

Isto é para que não canses

de procurar o que parece não existir

 

Isto é para que não chores

porque somos dos sonhos

 que só existem com a memória

 

Isto é para que não temas

os teus passos na escuridão

o teu sorriso franco de estrela miudinha

e o teu mais novo abrigo

que repousa em meu peito.

 


 

ONTEM, QUANDO VOCÊ FOI EMBORA

pude entender a beleza do ocaso

a incerteza do dia quando morre...

 

O caminho para a tua casa

era pular de estrela em estrela

como no poema do Quintana

 


 

DEPOIS DO TROVÃO

 

Ich hör' es sogar im Traum.

Heine

 

Depois do trovão o que haveria de falar

Cala-se o canto e o pássaro

Que nem sabe mais o que é voar.

Geme o trovão, rola o tambor pelo fim

Ainda há dor no céu

A dor é também o poder

Para o grito que vem da altura

Não valem mãos.

E elas convencem-me da solidão de Deus

Se do alto vem o lamento

Debaixo não pode subir.

 


 

CRISTINA,

 

Emparedados

a vida não é um presente.

 

Para Ana C.

 


 

POEMAS HORACIANOS

 

I

O tempo vai vencer, Lidia,

E onde estarás quando escurecer?

Não haverá mais força para o canto

E à terra se inclinará a rosa.

 

O tempo vai dizer, Lidia,

Se teu esforço compensou

Em tua fronte o Louro

Ou a dor que nos amadurece

Em seu decidido vigor.

 

A queixa enfraquece o ânimo

e o canto fortalece –

Mas, saibamos que a todo fim

O silêncio resta

Como a esta palavra

Em tuas mãos como a leitura mais suave

Ou em tua boca como o roxo vinho.

 

 

II

Como a rosa que espera a dor

E é matutina

Assim, a beleza mora em ti

Como a melancolia

 

(Morro eu, Lidia, por um verso

agora que dormes

sob o cansaço da lua fria).

Ensina-me uma lição a natureza:

a chuva não cai toda de uma vez.

Assim, aos poucos eu

Reporto-me ao peito onde moras

Nesse grito, como um brilho

Que mais não é a dispersão de estrelas

Também disperso fulgirei

Pelo teu sorriso, que é um sol pequeno,

Como um deus atento, resumirei.

 

Dá-me o que me tomas

Dá-me o que me queres

Em todos o mesmo desejo

Por isso asseguro que a dor

É um limite como o prazer

Mais afoito – e eu no meio,

Sozinho vou, mas contigo.

 

 

III

Não confia nada a ninguém, Cloe,

Que nada dura na humana memória.

Só o coração é sepultura

Do que sentes na dor ou na ventura.

 

Portanto, evita o gládio

Dos amores e toma

O momento presente como verdade –

O mais, a névoa baça

Como a incerta esperança

Do mesmo sol do passado

Dourar as promessas do futuro.

 

Ao tempo só pertence este segundo

Que o perdes, Cloe.

Colheo-o enquanto passa.

 

 

IV

Deponho as armas, Lidia,

E te venero – que me atinge

O golpe mais fatal :

O coração que livre quero.

 

Não me perderei por outra

Breve esperança.

Vem! Que só irei repetir

Que a ti é certo,

Meus próprios cantos

Que por ti são meus versos.

 

Deponho o Louro, Lidia.

Se de que adianta ter a glória,

Mas não o Amor, em teu alvo colo,

Onde mais feliz vivo

Que o rei da Pérsia.

 

 

V

Não devemos esperar por nada, Lídia,

Nem pela morte, que é a nossa última perda,

Neste momento

Em que te encontro

Será o meu último;

Portanto, ficar contigo

É só a alegria de agora

Porque depois será memória,

Ou esquecimento.

 

 

VI

Guarda o teu coração,

Não o reveles a ninguém,

Pois, se o revelares

Já não mais será teu.

 

O coração é um segredo,

Onde o medo ou o desejo

Se abrem ou se fecham

Como desejo ou como medo.

 

O seu único defeito

É não acatar a razão,

a razão que do coração

não sabe dizer não.

 

Guarda o teu coração

Aqui, perto do meu.

 


 

BRINQUEDO

 

O amor me insiste em te convidar, Cloe,

Mas ao lamento me inclino,

Como a rosa que a terra chora.

A verdade é a tumba,

E o teu coração, o meu destino.

 

Assim como o trigo é fruto da terra,

Mas lhe é preciso o fogo

Para ser pão,

Assim, a palavra é fruto do corpo,

Mas lhe é preciso o verbo

Para ser grão.

 

Não adianta entender o mundo

Com poesia − esta é uma escrita

que se sacrifica com a vida,

como os deuses outrora exigiam.

 

Portanto, Cloe, doe amor

E viva a vida que esta é

A melhor maneira de viver,

Como uma criança vive

Com seu pequeno brinquedo.

 


 

A HORA, QUEM A ESCOLHE?

 

A hora, quem a escolhe?

Podemos adiar o momento em que morremos?

Quem nos fechará os olhos para ver quem somos?

Quem nos chamará para o conforto de dormir?

Se morremos, não recusamos a morte.

Será que o último exílio se parece com o paraíso?

Esse indício de que o mundo foi concebido como arte,

Então, ─ que poeta é esse Deus que me reparte?

Um quadro, um teatro, ou um livro

Para o qual retornaremos como o derradeiro

Ou o primeiro personagem.

 

A hora, quem a escolhe?

Quem a quer? Como o arbítrio,

Livre até para não morrer?

Essa ilusória opção

De viver à espera do último segundo

Para o qual não poderemos dizer

Sim ou não.

 


 

SEMEAREI O RIO

 

Semearei o rio

Que é o lugar

Onde posso ter

O verso que me escapa

E o tempo

Que não quer ficar

 

Semearei o rio

Que é o lugar

Onde a morte

Detém-se

em alguma parte

E ligeiras, suas

Águas movem

Do tempo, a fria

Eternidade

Que a deixarei contigo

Em alguma margem.

 



[1] Professor da UFPA, doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp. E-mail: bencruz@ufpa.br