GUIMARÃES ROSA E TRADUTORES SEUS: QUEM É QUEM?

Resenha de:

BONATTI, Nícia Adan. Entre o amor da língua e o desejo: a tarefa sem fim do tradutor. Tese de doutorado, IEL/Unicamp, 1998.

Capítulos resenhados: Cap.III - “Uma escrita singular, ou de & sobre Rosa”; Cap.IV “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”.

Resenhado por Márcia Regina Terra*

altuzar@bighost.com.br

            O repúdio ao lugar comum e a busca pelo inusitado impingem à obra de Guimarães Rosa o feitio singular de “registrar expressões ainda não usadas no mundo das letras” (p.96). Para Guimarães Rosa, é preciso reinventar o léxico, pois um léxico apenas é insuficiente para descrever situações capazes de atingir o consciente e o inconsciente do leitor, despertando-lhe emoções insuspeitadas. De modo que, na sua tentativa de saciar o seu desejo de produzir significados que fujam ao lugar-comum, torna-se mister para Rosa ‘inventar’ palavras e criar situações que permitam ao leitor “ler outras coisas onde aparentemente há apenas criação de neologismos, inversão sintática ou deslocamento de palavras eruditas para um contexto inesperado” (p.99). Essa necessidade de expandir os limites de sua língua, de subverter as regras, tão latente em Rosa, pode ser percebida em seus dizeres a seguir,

                        Escrevo, e creio que é este o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. (p.99).

             

Por essas e outras nuances, não seria arriscado afirmar, portanto, que a escritura de Guimarães Rosa é pouco assimilável pelas pessoas habituadas à expressão lingüística mais usual, até porque, para esse autor mineiro, o mote é que as suas palavras produzam efeitos de sentidos desejados que extrapolem o que consegue fazer a escrita ordinária.

Como traduzir para outra língua, uma escritura que “cria sem limites e que ao invés de seguir trilhas amenas faz irromper, de dentro do texto, a lava de seu engendramento”? Como traduzir uma escritura cujos efeitos desejados são coletados por um “caçador de palavras” - autêntico pioneiro a desbravar as veredas de sua língua - vestido em blusão de couro, montado em cavalo manso, “caderneta amarrada com um corda na sela – para que ela não caísse e para que ele pudesse ir anotando tudo o que lhe despertasse a infinita curiosidade”? Como alcançar efeitos de sentidos desejados por um autor que cria a sua escritura em um “léxico particular”, em um “idioma próprio”, “seu”, já que palavras ‘inventadas’ não constam em dicionário algum? Como conseguir efeitos desejados para textos que exigem “um certo encadeamento rítmico que cria um certo cenário” que não pode ser “minimizado, filtrado ou ignorado numa tradução”? 

Uma alternativa possível seria a de beber na própria fonte de criação dessa escritura. E isso foi o que fizeram vários dos tradutores de Rosa, imprimindo a este autor a característica marcante de ele ter se tornado consultor de vários desses tradutores seus. Uma tentativa de garantir que a peculiaridade da sua obra não se perdesse nos meandros dos processos tradutórios a que seus textos foram submetidos? Quem sabe?

Certo é que GR manteve extensa correspondência (cerca de 372 cartas), entre 1958 a 1967, com tradutores diversos (Curt Meyer-Clason, Harriet de Onís, J. Jacques Villard, Angel Crespo e Pilar G. Bedate, Edoardo Bizarri, entre outros), em várias línguas, que ele dominava em diferentes graus (alemão, inglês, francês, espanhol, italiano, etc.). O mais importante é que o resultado desse insólito interlóquio pertence, hoje, ao arquivo do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo.

É com base nesse precioso arquivo que Nícia Bonatti, pesquisadora no campo de estudos da tradução, cria a sua não menos preciosa escritura, a sua tese de doutorado, cujos Capítulos III e IV são o foco desta resenha. Trata-se de uma obra que prima pela inteligência e aprofundamento envolvente com que é tecida pela autora, que consegue juntar, com habilidade surpreendente, todos os emaranhados fios que perfazem o complexo processo tradutório da peculiar escritura de Rosa, estando imbricados nesse processo, conflitos, angústias e tropeços, vivenciados tanto pelo autor quanto pelos tradutores seus, frente à dificuldade de alcançarem, em suas respectivas línguas, os efeitos de sentidos desejados por Guimarães Rosa, não apenas na língua dele, como na língua do outro.

Os modos de Rosa se relacionar com os diversos tradutores seus, eram diferenciados. Via de regra, ele tratava a todos com cortesia e atenção notáveis. Todavia, havia, dentre todos eles, um especialmente marcante, Edoardo Bizarri, um tradutor italiano, com quem Rosa trocou 72 das 372 cartas. Com este Rosa mantinha um relacionamento de igual para igual, id est, Rosa colocava o trabalho de ambos no mesmo patamar de escritura e criação. Tamanha identificação entre autor/tradutor é justificada, por Bonatti, de forma tão convincente, que, a nosso ver, merece ser, aqui, evidenciada:

                   Guimarães Rosa não é um escritor qualquer, dadas as características de sua escritura. Bizarri também não é um tradutor qualquer, dadas suas características pessoais e sua imensa capacidade de acompanhar a escritura de Rosa. O leitor a que ambos se dirigem, cada um em uma língua, também não é um qualquer, pois os textos não se destinam a facilitar nada para esse leitor final. A relação de identificação que se dá entre autor e tradutor é de tal forma determinante que os papéis que ambos desempenham perdem seus contornos próprios e superpõem-se, impedindo a clara determinação de quem é quem” (p.92).

            Não é pouco intrigante perceber, no relacionamento Bizarri-Rosa, o fato de que os questionamentos do primeiro mobilizam no segundo a necessidade de explicitações sobre o seu próprio processo de criação. Refletir sobre a sua própria escritura, abre para Rosa  infinitas possibilidades de interpretação e  reinterpretação, um mecanismo que se revela enriquecedor ao mesmo tempo que inquietante, como confessa o autor: “Rever qualquer texto meu, já, de si, é qualquer coisa de tremendo; porque o meu incontentamento é crescente, a ânsia de perfectibilidade, fico querendo reformar e reconstruir tudo, é uma verdadeira tortura” (carta a Harriet de Onís, de 23 de abril de 1959),  (p.93).

No capítulo IV intitulado “Um jogo de espelhos: a identificação entre Rosa e Bizarri”, dedicando-se, com mais profundidade, ao exame do processo de identificação entre autor-tradutor, Bonatti consegue mostrar que a identificação inquestionável entre ambos não é condição suficientemente forte para impedir que aconteçam,  vez ou outra, certos tropeços, entre Rosa e seu dileto tradutor, em função das dificuldades causadas pelo que poderíamos chamar, cremos, de embates travados  entre “efeitos de desejo do tradutor  Vs  efeitos de desejo do autor”.  Isso porque, embora conseguisse causar no público italiano o mesmo sentimento desejado por Rosa em seu leitor, aliás um fato reconhecido por Rosa (que costumava dizer: “quem quiser realmente entender G. Rosa, terá de ir às edições italianas”),  Bizarri, via-se, em muitas situações, em ‘papos-de-aranha’ para construir um sentido plausível em sua língua italiana, para os inusitados termos de Rosa.

Na carta 62, enviada a G. Rosa, como exemplo, é transparente o sentimento de desorientação que acomete Bizarri quando este confessa:

(...) de repente, esbarrei, empaquei, foi na página 694. Passei um dia de profundo descordo, inerte. Voltei à carga no dia seguinte, esperando restabelecer a sintonia. Nada feito. Para não parar definitivamente, o único jeito foi deixar de lado a diaba da página; o que fiz, retomando meu caminho na 695; e pedir socorro, para pegar a morma (...).

Quer dizer, a escritura de Rosa, recheada de genialidade criativa, consegue embotar a capacidade tradutória, também genial, de Bizarri e extrair deste uma lamentação angustiada quando, ao fim e ao cabo, Bizarri decide-se por “transcrever o trecho que derrotou todos os meus brios de tradutor” (idem). Enfim, o que pode o tradutor em tais situações?

Bizarri, no caso, parece optar por não ferir de morte o respeito devido ao autor e tenta se ajeitar, da melhor forma possível, em sua língua, perscrutando formas de alcançar o que seriam os efeitos desejados por Rosa, na dele. No caso das diabólicas onomatopéias, por exemplo, Bizarri “guarda os sons, tão caros a Rosa, e dá-lhes uma grafia em italiano que reproduza a sonoridade brasileira”; no que diz respeito às intraduzíveis palavras que são criação de Rosa, Bizarri “traduz a explicação que o mineiro lhe dá, e não aquilo que está no texto de partida”, os textos que Rosa classifica como ‘literais’ “são traduzidos como tais”.

O que se depreende disso tudo, portanto, é que Bizarri vê Rosa como aquele que detém as respostas para as suas inquietações e, nessa constatação, como ressalta Bonatti, configura-se um sentimento de desespero no tradutor que também se vê obrigado a refletir sobre os seus próprios mecanismos de escrita e, não raro, prefere deixar-se ocultar para garantir a primazia dos efeitos de sentido desejados pelo autor.

Para finalizar, caberia comentar que Bonatti consegue evidenciar, em sua brilhante tese, o quão difícil era seguir Rosa em suas aventuras lingüísticas, além de possibilitar vislumbrar a empreitada colossal a que cada tradutor se expunha ao se defrontar com a difícil arte de interpretar as idéias sui generis desse fantástico escritor. Aliás, como ressalta a citada autora, embora os aspectos abordados tenham a ver com um relacionamento ímpar entre um autor e um tradutor específicos, ocorrido em um cenário de identificação e transferência, o fato não deixa de apontar para situações similares, em maior ou menor grau, que podem ocorrer em qualquer momento de qualquer tradução.



* Doutoranda em Lingüística Aplicada/IEL