ESPINOSA
E A INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA: DOS AUTORES E DA TRANSMISSÃO DOS LIVROS
BÍBLICOS
Fábio Della
Paschoa Rodrigues
Sedule
curavi humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestare, sed
intellegere.
“Tenho-me esforçado por
não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por
compreendê-las.”
Baruch de
Espinosa
INTRODUÇÃO
Para
entendermos Espinosa, aplicaremos à leitura e interpretação de seu texto os
princípios que ele mesmo propõe para a leitura do texto bíblico. Diz Espinosa
no Tratado Teológico-Político: “podemos explicar as palavras de alguém
tanto mais facilmente quanto melhor conhecermos o seu talento e o seu caráter”
(TTP, VII, 211)[1].
Faremos, então, um breve recorte de sua vida, procurando algumas das fontes de
seu pensamento.
Baruch de
Espinosa (português Bento, hebreu Baruj, latim Benedictus) nasce em 24 de
novembro de 1632. Seus pais eram judeus, povo sem pátria e ligado, por isso,
fortemente à religião, que sustentava sua identidade cultural. Pertencia à
comunidade judaica portuguesa que refugiara-se em Amsterdã, em fins do século
XVI, fugindo da perseguição da inquisição ibérica. Essa comunidade torna-se a
“capital do judaísmo ocidental” e passa a abrigar judeus de todos os cantos.
Além de praticarem com liberdade sua religião, na comunidade os judeus
desenvolvem também suas capacidades de trabalho. Cruzam-se na comunidade,
assim, diversas correntes de idéias. O judaísmo que se pratica nessa comunidade
não é ortodoxo. Muitos judeus que chegavam à comunidade tinham passado por uma
coerção, tendo que socialmente aceitar a religião católica e intimamente ser
fiel ao judaísmo. Eram os marranos, católico sem fé e judeu sem
conhecimento, mas judeu no querer: “son católicos sin fé y judíos sin doctrina”
(Gebhardt, 1940:14). A volta ao judaísmo não era, como poder-se-ia esperar,
tranqüila quando já no seio da nova comunidade. Ela se revelava complexa,
heterodoxa e contraditória. É nesse ambiente complexo que nasce Espinosa, cuja
família tinha grande importância na administração da comunidade
judaico-portuguesa de Amsterdã. Ele é educado no judaísmo rigoroso mas vivencia
também os questionamentos que abalavam a comunidade religiosa.
O espírito
crítico e o racionalismo alimentam discordâncias e conflitos com as crenças da
comunidade. Não podemos deixar de lembrar aqui o caso de Uriel da Costa que, em
seu Exemplar humane vitae, reduz a Lei revelada à lei natural. O caso
Uriel da Costa teve repercussão (ele acaba por suicidar-se em 1640) e Espinosa
certamente refletiu sobre seus pensamentos. É pelas relações com Juan de Prado,
médico oriundo da Espanha que chega a Amsterdã com o fito de aderir ao
judaísmo, que Espinosa começa a pôr em xeque as verdades do judaísmo. Juan de
Prado chega em Amsterdã por volta de 1655 e, ao converter-se, deparou-se com
uma série de dificuldades doutrinais e dúvidas, que não conseguiu integrar-se
sem tensões à comunidade judaica. Torna-se, então, agente de heresias,
perturbando a fé da comunidade. É acusado pela comunidade de perverter jovens
com suas idéias heterodoxas, pelo que é aplicada a expulsão da comunidade. Ele,
no entanto, não aceita a decisão e permanece em Amsterdã. Suas proposições, que
influenciaram Espinosa, são “que a razão individual é juiz supremo nos domínios
do saber e do agir; que só pela razão sabemos que Deus existe e criou o mundo;
a Bíblia é um livro como os outros; a Natureza é constituída pelo funcionamento
de leis imutáveis” (Abreu, 1993:41). A experiência marrânica, a cisão entre o
catolicismo imposto e o judaísmo reprimido e desejado, une Uriel da Costa, Juan
de Prado e Espinosa.
Pouco se sabe
sobre o comportamento religioso de Espinosa em sua juventude. Luís Machado de
Abreu (1993) aponta principais conjecturas acerca das influências que
prepararam o jovem Espinosa para seu caminho filosófico, distanciando-o do
judaísmo. São elas: a influência da filosofia cartesiana; o espírito aberto dos
cristãos holandeses que se opunham à Igreja calvinista; o convívio com
Francisco van den Enden, com quem Espinosa aprendeu latim; as tendências
heterodoxas que se manifestavam na comunidade judaico-portuguesa de Amsterdã,
das quais as de Juan de Prado são as que mais influenciam Espinosa, e com quem
este conviveu de perto.
O estudo da
Bíblia levou Espinosa às obras dos comentadores judeus: Abraham ibn Ezra, a
quem deve o questionamento da unidade do Pentateuco; Gersonides, que assinalou
as discrepâncias da cronologia bíblica; Maimônides, considerado o maior
filósofo do seu povo, que, escolástico judeu, relaciona a Bíblia à concepção
aristotélica do mundo; conheceu ainda as teorias de Leão Hebreo, Abraham
Herrera e outros filósofos do seu tempo, que tentavam conciliar o judaísmo à
cultura de seu tempo (cf. Gebhardt, 1940:30).
A Espinosa,
assim como a Uriel da Costa e Juan de Prado, foi aplicado o herem, isto
é, a expulsão da comunidade judaica, em 1656. Espinosa não acatou as
advertências e continuou firme em suas convicções. Segundo Abreu (1993), a
decisão da comunidade deixou Espinosa mais livre em seu processo filosófico de
investigação, mas o rompimento com a comunidade judaica não significou o
rompimento com a cultura judaica. Além disso, o ambiente liberal de Amsterdã
permitiu que ele investigasse suas questões com a liberdade que desejava:
Après son
excommunication de la communauté juive, Spinoza a joui d’une liberté d’esprit
et ed solides amitiés dans les milieux réformés néerlandais, dans uns pays
devenu un asile de liberté pour tous les persécutes du monde catholique. Aussi
Spinoza nous présente-t-il dans son dernier chapitre du Traité théologico-politque
une image idyllique de l’ampleur et des bienfaits de la liberté religieuse dans
la ville d’Amsterdam. (Zac, 1965 :7)
Sua experiência
religiosa foi, assim, o ponto de partida para sua reflexão filosófica.
O TRATADO
TEOLÓGICO-POLÍTICO E A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
Em 1655
Espinosa passa a dedicar-se à composição do Tratado Teológico-Político.
Nesse ano escreve em correspondência:
Estou compondo agora um
tratado sobre minha interpretação da Escritura. A isto me induzem: 1º) os
preconceitos dos teólogos; preconceitos que, como se sabe, impedem sobremaneira
que os homens dediquem seu espírito à filosofia, e por isso me propus a tarefa
de revelá-los e afastá-los do pensamento dos mais inteligentes; 2º) a opinião
que no povo se formou a meu respeito, que me acusa incessantemente de ateísmo,
pelo que me vejo obrigado a desvirtuar, no que me é possível, essa opinião
sobre minha pessoa; 3º) a liberdade de filosofar e de dizer o que se pensa. (apud Gebhardt,
1940:81-2) [tradução nossa]
Somente em 1670
o Tratado Teológico-Político aparece publicado sem o nome do autor. A
despeito de tal precaução, o livro causa enorme impacto e réplicas da Igreja,
que o chamou um “livro nocivo, maldoso e blasfemo” (cf. Gebhardt, 1940:85). Em
1674, a Corte da Holanda proíbe o Tratado, juntamente com outros livros
heterodoxos. Com o tratado, Espinosa quer refutar a interpretação baseada na
revelação e superá-la, propondo uma interpretação histórico-crítica. O filósofo
afirma no Prefácio:
Refletindo sobre tudo
isto – a saber, que a luz natural é, não só desprezada, mas até condenadas por
muitos como fonte de impiedade; que as invenções humanas passam por documentos
divinos e a crendice por fé; que as controvérsias dos filósofos desencadeiam na
Igreja e no Estado as mais vivas paixões, originando os ódios e discórdias mais
violentos, que facilmente arrastam os homens para sublevações e tantas outras
coisas que seria longo descrever aqui – fiquei seriamente decidido a empreender
um novo e inteiramente livre exame da Escritura, recusando-me a afirmar ou a
admitir como sua doutrina tudo o que dela não ressalte com toda a clareza. Com
esta precaução, elaborei um método para interpretar os Livros Sagrados (...) (TTP,
Prefácio, 116)
Quando Espinosa
refere-se a preconceitos dos teólogos, refere-se a “pré-conceitos”; ou seja,
Espinosa ataca as concepções a priori dos comentadores da Bíblia, que
tendiam a interpretá-la de acordo com suas idéias preconcebidas. O que quer
Espinosa é aplicar uma crítica histórica na interpretação da Sagrada Escritura,
ele quer uma “ciência bíblica”. A Bíblia deveria ser interpretada apenas pela
própria Bíblia e por sua história (de seus livros e seus autores). Espinosa
trata, assim, a Bíblia como uma obra literária, uma “Literatura Sagrada”. O Tratado
Teológico-Político recusa o princípio da inspiração divina como ponto
prévio para toda a crítica externa ou interna do texto, desvinculando o método
de qualquer compromisso dogmático.
Espinosa parte
da regra hermenêutica sola scriptura. O entendimento da palavra da
Bíblia deve dar-se exclusivamente pelo escrutínio do texto bíblico. Premissa
que se opõe à de Santo Agotinho, sola fidei, para quem a verdade da
palavra bíblica é pressuposta. A Escritura, para Santo Agostinho, contém a
Verdade e vários podem ser os caminhos, contanto que nos conduzam até Ela. Há aqueles que se desviam
desses caminhos possíveis, a quem devemos socorrer, para que reencontrem a
Verdade. Espinosa inverte esses princípios. Para ele, é fundamental o caminho
(método), sem o qual não conseguimos alcançar a palavra verdadeira da
Escritura. É o método que deve fornecer critérios e meios para avançar no
caminho do saber. Em Santo Agostinho temos uma Verdade de antemão; por isso, o
caminho (método) não é importante. Para Espinosa, ao contrário, o método é o
fundamental, já que não temos a Verdade, mas sim preconceitos. A busca da
Verdade bíblica para Espinosa é, então, um problema metodológico. Mas o método,
para Espinosa, não é apenas o caminho através do qual se avança em direção ao
conhecimento verdadeiro. Para Espinosa “o verdadeiro método é a via pela qual
são procuradas na devida ordem a própria verdade, ou as essências objetivas das
coisas, ou as idéias (todos estes termos significam o mesmo)” (apud Abreu,
1993:227).
O capítulo VII
do Tratado Teológico-Político, “Da interpretação da Escritura”, é
fundamental para compreendermos o método de Espinosa para a leitura e
interpretação da Sagrada Escritura. No início do capítulo, o filósofo tece suas
considerações acerca das interpretações deturpadas da Bíblia, deturpações
advindas dos preconceitos de seus comentadores. Para Espinosa, “andam quase
todos a fazer passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não
procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para
que pensem como eles” (TTP, VII, 206). Para sairmos dessas invenções,
dos preconceitos dos teólogos, é mister “abordar e discutir o verdadeiro método
para interpretar a Escritura”. Em seguida, afirma uma paridade do método de
interpretar a Escritura com o método de interpretar a natureza. Em ambos os
casos, é necessário recorrer à história (da natureza ou da Escritura) e, a
partir daí, concluir, com base em dados e princípios corretos, as definições
das coisas naturais, num caso, e os pensamentos dos autores, no outro. Espinosa
afirma, com isso, que a Escritura é obra de vários autores. Não se pode admitir
princípios ou dados que não aqueles que se podem extrair da própria escritura e
de sua história: “a regra universal a seguir na sua interpretação é a de não
lhe atribuir outros ensinamentos além daqueles que tenhamos claramente
concluído pela sua história” (TTP, VII, 208). Espinosa entende
“história” a partir de sua etimologia grega: história, nesse sentido, significa
inquirição, recolha de fatos e de elementos constatados, dos quais
extrair-se-ão os princípios para a dedução científica (cf. Zac, 1965:29). Essa
história deve seguir alguns princípios. Citemos do próprio Espinosa tais
princípios:
I
– Deve incluir a natureza e as propriedades da
língua em que foram escritos os livros da Escritura.
II
– Deve coligir as opiniões contidas em cada
livro e reduzidas aos pontos principais (...) Em seguida, deve registrar todas
as [opiniões] que são ambíguas ou obscuras ou que parecem estar em contradição
entre si.
III –
A história da
Escritura deve descrever os pormenores de todos os livros dos profetas de que
chegou notícia até nós. (...) Depois, as voltas que deu cada livro (...) e,
enfim, de que modo foram reunidos num único corpo. (TTP, VII, 209-211)
A interpretação
da Bíblia, segundo os princípios de Espinosa, só poderá revelar o sentido
próprio da Bíblia e nada mais. Para que se constitua, então, em verdade
objetiva, deve submeter-se à prova da razão. A Bíblia deve ser interpretada à
luz natural e não está sujeita à “inspiração divina”, ou à “imaginação humana”.
A interpretação das Escrituras é
racionalista-histórico no sentido de que as Escrituras, assim como a natureza,
deve ser entendida à luz natural da racionalidade e não depender de luz
sobrenatural, porém não no sentido de ajustar as Escrituras aos imperativos da
razão, mas de extrair os conhecimentos delas mesmas. O método de interpretação
da Escritura de Espinosa insere-se no conjunto do espírito racionalista do
século XVII e abrange todo o esforço de pensar a liberdade do homem no estado,
ao mesmo tempo que prioriza a concepção de Deus, seus atributos infinitos, e da
religião como amor intelectual a Deus e, portanto, não servil e não determinado
pela imaginação. Delimita-se então o método hermenêutico espinosiano,
que recorre a três princípios de interpretação: o gramatical, o estrutural e o
histórico. A Escritura, considerada obra literária, e considerada obra de
vários autores, só pode ser interpretada se antes estudarmos a gramática das
línguas em que foi escrita. Nesse sentido é que Espinosa escreve uma gramática
(inacabada) do hebraico. Além disso, deve-se proceder a uma análise estrutural,
procurando compreender trechos da Bíblia (“opiniões”) pelo próprio texto
bíblico e recusando as opiniões “ambíguas ou obscuras”. Para Espinosa, opinião
clara é aquela da qual apreende-se o sentido facilmente através do contexto e
não sua verdade pela razão. Finalmente, e aqui nos deteremos com maior
profundidade em seguida, a história da Bíblia deve considerar todos os aspectos
relativos à tradição/transmissão dos livros bíblicos e de seus autores.
Espinosa não intenta recuperar a originalidade dos textos bíblicos, mas procura
compreendê-los a partir da época em que foram escritos. É, como afirma Moreau
(1992:124), uma arqueologia da Bíblia:
L’enquête archéologique
suppose la connaissance des langues où sont rédigés les écrits bibliques, des
informations historiques, la reconstituition de la mentalité des auteurs et des
peuples, l’analyse des instituitions, etc. Il s’agit de traiter la Bible comme
la science philologique traite n’importe quel autre texte, et, plus
générallement, comme la science de la Nature traite la Nature: en ce sens,
interpreter l’Écriture à partir de l’Écriture elle-même signifie qu’on
s’abstiente de mélanger ses propres croyances, ou ses propres préférences (même
si elles sont rationnelles) avec l’objet que l’on étudie (...)
As dificuldades
de um método hermenêutico como o que propõe Espinosa são evidentes: para
entendermos a Bíblia seria preciso um domínio da língua hebraica (além das
outras línguas em que foram escritos alguns livros); seria necessário conhecer
a constituição da língua hebraica, de modo a resolvermos problemas de
significação devido às mudanças históricas; seria necessário percorrer fontes
históricas que lançassem luz sobre os livros e sua transmissão; a quase
impossibilidade de obtermos os livros na língua em que originalmente foram
escritos (e, em muitos casos, a inexistência de tais livros, que se perderam).
A
HISTÓRIA DA TRANSMISSÃO DOS LIVROS BÍBLICOS E DE SEUS AUTORES
A interpretação
do texto bíblico é uma tarefa hermenêutica fracassada de antemão. O Verbo de
Deus é conjugado em qualquer tempo. Como apreender, então, por uma língua
histórica a Palavra Divina, atemporal, infinita, absoluta? A Igreja vale-se do
Milagre, da revelação. Como vimos, Espinosa rejeita a interpretação pela
revelação divina a poucos eleitos. O sentido bíblico também é de difícil
apreensão. Entra aqui o peso da tradição, entendida como transmissão do(s)
sentido(s) da palavra bíblica. A tradição é a cadeia cujos elos são sentidos
interligados, pelos quais tentamos recuperar o elo primeiro, o sentido
original. Os teólogos e intérpretes da Bíblia almejam a apreensão deste sentido
último, deste sentido “original”. Nessa tentativa de apreensão da letra e do
sentido bíblicos, as contradições encontradas serão resolvidas pelos teólogos
através do método de interpretação alegórico. Assim, é como se o texto bíblico
tivesse dois destinatários: um que apreende apenas o sentido na superfície do
texto e outro que é capaz de perceber outro sentido, escondido, que é revelado
por este destinatário. Estabelece-se então uma hierarquização no saber da
Bíblia. É em meio às dificuldades em torno da apreensão do sentido bíblico que
os racionalistas se voltam à letra, estável. A interpretação proposta por
Espinosa contrapõe-se tanto às atitudes mais racionalistas – notadamente à de
Maimônides, comentador judeu que sustentava a racionalidade subjacente ao texto
bíblico –, quanto às atitudes dogmáticas (a tradição católica, representada por
Santo Agostinho e São Tomás, e a tradição reformista, representada por
Calvino).
Como a Bíblia
não foi escrita para os sábios, ela não deve ser hermética; ao mesmo tempo, ela
na pretende apresentar idéias filosóficas sobre Deus, sobre o mundo e o homens,
mas sim ensinamentos que podem ser interpretados por todo o povo. Então, onde
reside o problema hermenêutico da Bíblia? Para Espinosa, trata-se de uma
questão filológica e histórica. A tarefa de Espinosa, como já afirmamos no
capítulo anterior, não tem o intuito de recuperar um texto na sua versão
original, mas sim a historicização desse texto, o seu enquadramento num
contexto histórico onde foi produzido, no seio do qual ele se torna
significativo de uma maneira específica. Ele propõe uma tarefa hermenêutica que
confronta dialeticamente o exterior e o interior do texto bíblico. Assim, são
necessários conhecimentos sobre a língua em que o texto foi escrito, bem como
sobre a sociedade e a época em que foi escrito; é necessário, no outro pólo,
passar à investigação dos sentidos inscritos no próprio texto, tentando
resolver os problemas interpretativos pela estrutura textual, que considera a
história desse texto – e assim dialeticamente. A tarefa da interpretação, segundo
Espinosa, então “destina-se a tentar refazer a história do texto através da
história da língua hebraica e da história dos que o escreveram, dos que o
selecionaram e daqueles a quem foi primeiramente dirigido” (Aurélio, s/d: 74).
Detenhamo-nos
agora no que Espinosa diz a este respeito. Para isso, retomemos numa citação
completa o que ele postula como
terceiro princípio para a correta interpretação da Bíblia:
Por último, a história
da Escritura deve descrever os pormenores de todos os livros dos profetas de
que chegou notícia até nós, ou seja, a vida, os costumes, os estudos de cada um
dos autores, quem era ele, em que ocasião, em que época, para quem e,
finalmente, em que língua escrevia. Depois, as voltas que deu cada livro: como
foi originalmente acolhido, a que mãos foi parar, quantas versões conheceu, a
conselho de quem foi incluído entre os Livros Sagrados e, enfim, de que modo
foram reunidos num único corpo todos os livros já universalmente reconhecidos
como sagrados. Tudo isto, sublinho, deve estar incluído na história da
Escritura. Na verdade, para saber quais as opiniões que são enunciadas como
leis e quais as que são como ensinamentos morais, importa conhecer a vida, os
costumes e os estudos do autor, além de que podemos explicar as palavras de
alguém tanto mais facilmente quanto melhor conhecermos o seu talento e a sua
maneira de ser. Depois, para não confundir os ensinamento eternos com aqueles
que eram válidos apenas por um determinado tempo e para um reduzido número de
pessoas, importa também saber em que ocasião, em que época e para que nação ou
século foram escritos todos esses ensinamentos. Finalmente, é importante
conhecer todas as outras circunstâncias de que tínhamos falado, para saber não
só que autoridade devemos atribuir a cada livro, mas também se ele não poderá
ter sido conspurcado por mãos que o adulteraram, se acaso lhe introduziram
erros e se estes foram corrigidos por homens competentes e dignos de crédito.
Tudo isto é absolutamente necessário para saber-se, a fim de que não aceitemos,
arrebatados por cegos impulsos, seja o que for que nos propõem, mas unicamente
o que for certo e indubitável. (TTP, VII, 210-211)
Temos aqui o
ponto central de nossa discussão. Espinosa rejeita a interpretação baseada na
revelação. A Verdade não é admitida aprioristicamente, como para Santo
Agostinho, e Espinosa considera a Escritura obra de vários autores, sujeitos
históricos. Lembremo-nos também de sua experiência religiosa e de sua
orientação iluminista-racionalista. O que ele quer é, como o próprio Espinosa
enfatiza ao longo do Tratado, é “não admitir como doutrina dos profetas
senão o que por essa mesma história [da Escritura] se conclui, ou seja, o que
dela se deduz com a maior clareza” (TTP, VII, 211). Para Espinosa a
tradição passa pela transmissão dos textos e, por isso, é fundamental também
estudarmos a história dessa tradição, de modo a compreendermos a obra tal como
se nos apresenta. É preciso estudar e averiguar as diversas tradições que se
ocuparam da interpretação do texto bíblico. Espinosa ataca e rejeita todas: a
tradição dos fariseus, a tradição católica – e aqui Espinosa questiona a
autoridade do Papa, a tradição mesma dos judeus.
A dificuldade
de se conhecer a história da transmissão dos livros é afirmada pelo próprio
Espinosa, pois a maior parte das vicissitudes por que passaram os livros da
Escritura não nos chegaram ao conhecimento. Desconhecemos sua origem, quem os
escreveu – ou, então, restam-nos dúvidas acerca da autoria, não sabemos a época
em que foram escritos etc. Apesar de todas estas dificuldades, Espinosa insiste
em que é imprescindível tal conhecimento para se chegar aos ensinamentos
verdadeiros da Escritura:
Quando lemos um livro
onde vêm coisas inacreditáveis ou incompreensíveis, ou um livro que está
escrito em termos extremamente obscuros, se não sabemos quem é seu o autor, em
que época e em que ocasião foi escrito, debalde tentaremos saber ao certo o seu
verdadeiro sentido. Porque, se ignoramos tudo isto, não podemos de maneira nenhuma saber
qual foi ou qual poderia ser a intenção do autor; pelo contrário, se o
conhecermos exatamente, organizaremos os nossos pensamentos de forma a não
sermos assaltados por qualquer preconceito, quer dizer, a não atribuir ao autor
ou àquele em nome de quem ele escreveu nem mais nem menos do que aquilo que é
justo e a não imaginar coisas diferentes das que o autor poderia ter em mente
ou do que a sua época e as circunstâncias impunham. (TTP, VII, 218)
Ainda assim,
Espinosa ressalva que há passagens na Bíblia que, frente às dificuldades que
apresenta seu método de interpretação da Escritura, permanecerão obscuras e
ignoraremos seu sentido verdadeiro.
Como a tradição
não preservou grande parte da história da Escritura, bem como deturpou ba parte
dos fundamentos e princípios contidos na Bíblia, conforme a opinião de
Espinosa, ele se propõe a corrigir os preconceitos da teologia. Nota, porém,
que seu esforço é tardio, pois que as coisas chegaram a tal ponto que os homens
não admitem ser corrigidos. A partir do capítulo VIII do Tratado Teológico-Político,
Espinosa passa a aplicar seu método exposto no capítulo anterior e questiona a
autoria dos livros do Antigo Testamento e suas voltas até o texto que nos
chegou. A argumentação de Espinosa, com respeito à autoridade dos profetas,
fundamenta-se
sur l’affirmation que la
vivacité de l’imagination est, chez le prophète comme chez la plupart des
hommes, inversement proportionnelle à la perfection de l’entendement et, que
loin d’être libre, c’est-à-dire, de dépendre de la constituition de sa nature
seule, elle dépend du tempérament, des fluctuations des humeurs, du mode de
vie, du milieu géographique et, enfin, de la fonction sociale du prophète. (Zac, 1965 :178)
O filósofo
passa depois a averiguar a história dos apóstolos autores dos livros do Novo
Testamento. Como Espinosa rejeita a revelação, ele considera que os apóstolos
escreveram suas epístolas na qualidade de doutores e não na condição de
profetas. Assim, tenta demonstrar seu ponto de vista, mostrando, por exemplo,
que na Epístola I aos Coríntios bem como na Epístola aos Romanos,
há várias passagens, citadas por Espinosa, que demonstram que Paulo fala
segundo sua própria opinião (cf. TTP, XI, 267). Outros argumentos são
ajuntados e Espinosa finda por concluir que as epístolas dos apóstolos “foram inspiradas
unicamente pela luza natural” (TTP, XI, 272). Isso não tirava, contudo,
a autoridade dos apóstolos, que pregavam em nome de Cristo.
Seguindo seu
método crítico-histórico, Espinosa conclui no capítulo XII do Tratado
que os livros da Bíblia possuem uma palavra de Deus “errada, truncada,
adulterada e incoerente consigo mesma” (TTP, XII, 275). Reafirma que a
religião deve dispensar a superstição, a imaginação, a invenção. A despeito de
toda a contaminação histórica das transmissões de seus livros, a Escritura,
enquanto ensina as regras para a obediência e a salvação, não se corrompeu. E é
nesse sentido que se deve entender que Deus é o autor da Bíblia: “porque aí se
ensina a verdadeira religião e não porque Deus tenha querido transmitir aos
homens um certo número de livros.” (TTP, XII, 279).
Espinosa faz
uma síntese de seus argumentos na defesa de que a Escritura só pode chamar-se
palavra de Deus na perspectiva da religião. Destacamos três que revelam a
importância do escrutínio histórico, dos livros e de seus autores, na busca da
verdade bíblica:
Os livros de ambos os Testamentos não foram escritos
por mandato expresso e de uma vez por todas, mas por simples acaso, por certos
e determinados homens, em conformidade com as exigências de seu tempo e a sua própria
maneira de ser, como indica claramente a vocação dos profetas (que foram
chamados para admoestar os ímpios de seu tempo) e as Epístolas dos apóstolos.
Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos de
entre muitos outros e reunidos e aprovados por um concílio de fariseus (...);
os livros do Novo Testamento foram também admitidos no cânon por decretos de
vários concílios, nos quais se rejeitaram como espúrios alguns outros que muita
gente tinha por sagrados. Ora,
entre os participantes desses concílios (tanto dos fariseus como dos cristãos)
não havia profetas, mas só peritos e doutores, e não obstante temos de admitir
que, nessa seleção, o critério usado foi a palavra de Deus. Sendo assim, antes de
aprovarem todos os livros, eles tinham necessariamente de ter conhecimento
dessa mesma palavra de Deus.
Os
apóstolos (...) não escreveram na qualidade de profetas mas de doutores e
escolheram o método que consideraram mais fácil para os discípulos a quem
queriam ensinar (...) (TTP, XII, 280-281)
CONCLUSÃO
Compreender o
método hermenêutico de Espinosa a partir de sua história, seguindo seus
próprios princípios, nos ajuda a enxergar o Tratado Teológico-Político
muito além de um trabalho de simples erudição ou racionalismo. Conhecer a
experiência político-religiosa de Espinosa, sua condição marrânica e os motivos
que o levaram a empreender o Tratado, permite-nos enxergá-lo como um
trabalho de reflexão sobre Deus, sobre a Escritura, sobre a liberdade de
pensar. No Tratado Teológico-Político
c’est um homme qui s’adresse
àd’autres hommes, cherche à les coinvancre, en réfutanta directement les
préjugés de ses adversaires, désignés par leurs noms, et y mettant toute
l’ardeur d’un homme qui lutte pour une cause juste. (Zac, 1965 :219)
Em nome dessa
“causa justa” é que Espinosa se propõe a interpretar a Escritura pela
Escritura. E, ao intentar tal projeto, o filósofo estabelece os princípios
hermenêuticos que seguirá: o gramatical-lingüístico, o estrutural (contexto) e
o histórico. Temos, então, como princípio fundamental para chegarmos aos
verdadeiros ensinamentos, que averiguar as tradições bíblicas, ou seja, a
história das transmissões dos textos bíblicos, incluindo a história de seus
autores.
Na busca pela
Verdade contida na Bíblia, Espinosa conclui que os livros da Escritura contêm a
Palavra de Deus, mas que eles mesmos não são a Palavra de Deus. Seu método
crítico-histórico insere-se no movimento racionalista, mas não pode ser
reduzido apenas a uma tentativa de interpretação “naturalista”. É, antes, uma
tentativa de lutar com as armas do pensamento para assegurar as condições
políticas, sociais e até religiosas da liberdade de expressão e da busca da
verdade.
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Luís Machado de. Spinoza –
a Utopia da Razão. Lisboa: Vega, 1993.
AURÉLIO, Diogo Pires. “Introdução”
In: ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, s/d.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado
Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s/d.
GEBHARDT,
Carlos. Spinoza. Tradução
de Oscar Cohan. Buenos Aires: Editorial Losada, 1940.
MOREAU, P. F.
“Les Principes de la Lecture de l’Écriture Sainte dans le T.T.P.”
In: L’Écriture Sainte au Temps de Spinoza et dans le Système Spinoziste,
Travaux et Documents nº 4, Presses de l’Université de Paris Sorbonne,
Paris, julho 1992, pp. 119-131.
ZAC, Sylvain. Spinoza
et l’Interpretation de l’Écriture. Paris: Presses Universitaires de France,
1965.
[1] A referência ao Tratado Teológico-Político
será feita indicando-se a sigla TTP, seguida do capítulo do livro e da
página da edição utilizada neste trabalho (v. Bibliografia).