ANOTAÇÕES SOBRE BAKHTIN

 

Verbetes do curso "Tópicos de Lingüística V",

 ministrado pelo Prof. Dr. João Wanderley Geraldi,

sobre o pensamento de Mikhail M. Bakhtin,

anotados entre julho e novembro de 2003

 

Wilson David

wilsondavid@cpfl.com.br

 

À guisa de apresentação

 

 O gênero "Anotação" só se justifica no ambiente de aula, e tem como primário o mundo da vida e da cultura interconectados pelo ato responsável (Postupok) de mediação do mestre em infinita dialogia com o aluno. O estudante, cujo Eu se desloca para o lugar do sujeito da empatia, subsume novamente esse Eu que volta enriquecido, humanizado, despertado. Como escreveu Maria Zambrano, Y el maestro ha de ser quien abra la possibilidad, la realidad de outro modo de vida, de la de verdad. La ignorancia despierta es ya inteligencia em acto. Ignorancia y saber circulan y se despiertan igualmente por parte del maestro y del alumno, que sólo entonces comienza a ser discípulo: Nace el diálogo.

 

O Professor Jorge Larrosa, catedrático eminente da Universidade de Barcelona, Espanha, durante uma palestra no Centro de Convenções da Unicamp em agosto de 2003, apresentou as categorias essenciais da obra de Maria Zambrano, escritora pouco conhecida no Brasil e ainda não traduzida em Língua Portuguesa. Para ela, ler é defender a solidão em que se está, solidão específica que é uma comunicação.

 

O ato responsável de escrever e ler se justifica porque temos falado demais, e na oralidade as palavras circulam depressa demais, sentimo-nos fora de nós mesmos, nossas palavras nos atacam. Dizemos as palavras e as perdemos. A leitura e a escrita são meios de deter o tempo crônico, veloz, que nos arrasta. No ler e no escrever podemos sentir as palavras de uma forma diferente, mudamos nossas relações com as palavras, para que alguma coisa seja tirada do silêncio.

 

Para Maria Zambrano, estudar tem a ver com a amizade com as palavras. A sala de aula é o lugar da voz e, tal qual as clareiras dos bosques, é onde aprendemos a ouvir. A voz do destino se ouve mais do que a figura do destino se vê.  Ao ler temos que ir ao encontro da palavra, que também vem até nós. Mas se entramos distraidamente numa aula, a palavra que nos é destinada chega melhor, pois não estamos preocupados com outras coisas, ou seja, nossa abertura e disponibilidade é maior. A palavra dita é fluida, o espírito é vivo, pertence ao mundo da vida. A letra escrita é morta e precisa de nossa vida para viver. Esses conceitos remetem a Aristóteles, para quem o  que está na voz é o símbolo dos padecimentos da alma. Há elementos da voz que não podem ser escritos: gemidos, balbucios, sussuros.

Um bom estudante vai à aula para ouvir, não para perguntar. O mestre  não é alguém a quem perguntar, mas ante quem procedemos ao ato responsável de perguntar a nós mesmos o que não sabemos. A finalidade do professor é produzir conversa, dialogia. Na sala de aula, a conversa tem qualidades específicas, há acontecimentos e acasos, mas temos que tirar algum resultado de conhecimento.

 

Esta coleção de verbetes é uma organização em ordem alfabética de anotações feitas durante as aulas do Professor Dr. João Wanderley Geraldi, durante o curso "Tópicos de Lingüística V", ministrado no segundo semestre de 2003 no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Sua apresentação como trabalho final do curso tem como objetivo fixar os conceitos principais discutidos durante as aulas, e assim transformá-los em uma ferramenta de auxílio à memória. Oxalá estas anotações sejam válidas como fontes primárias para outros estudantes.

 

 

Acontecimento: definição a partir de sua concretude

A nova unidade real do mundo deixa de ser produto de mente abstrata (mundo das idéias) para ser experimentada no concreto. Partindo desse pressuposto, Bakhtin começa a estudar os romances de Goethe, mostrando a noção de acontecimento como componente essencial e irremovível, e não mais fragmentos de tempos determinados. A noção de acontecimento adquire essencialidade única, unitária, geograficamente localizada, uma vez que o acontecimento é da ordem do humano, interfere no humano e na natureza justamente por ser geograficamente localizado.

 

Alteridade e Dialogismo

São duas categorias essenciais em Bakhtin. Quando escrevemos temos no horizonte um interlocutor, digo o que construí e o Outro entende e pode fazer uma outra construção em cima disso e me retornar. Daí a Responsabilidade. No processo de dialogia de Bakhtin, os sujeitos do diálogo se alteram em processo (devir). O Diálogo é uma corrente inserida na cadeia infinita de enunciados (atos) em que a dúvida leva a outro ato e este a outro, infinitamente. O enunciado afirmado por alguém passa a fazer parte de todos os enunciados, numa cadeia infinita. O mundo ético é fluido e concreto, enquanto que a historicidade do ser em evento, participante,não é. O centro de valores se dá fora do humano em toda a humanidade, considerando-se a natureza como centro irradiador da verdade. A identidade é dada pela alteridade.

 

Análise do discurso

Bakhtin faz a descrição da arquitetônica real, e somos levados a perguntar qual seria a importância dada à estrutura e ao ato individual e concreto. Na análise de um discurso real, teríamos que reconhecer a incapacidade de se fechar um modelo, para não termos a pretensão de dizer "O discurso é isso", como Pravda. Os manifestos na cadeia infinita de enunciados não têm fechamento, apesar de serem reais e acabados, pois podemos indicar possíveis vazios. Por exemplo, na sala de aula, o momento de "Eureka" do aluno é único e cada um tem o seu. Esse momento pode se dar até anos depois do momento da aula.

 

Assinatura, Transcendência e Transgressão

Transcendente significa "fora dos limites do possível "( Divino). Transgrediente significa "fora do que está sendo pensado ". Para a Sociologia Funcionalista, cada um faz um papel determinado, e por esse ponto de vista podemos construir um álibi da existência. No entanto, quando transgrido um papel, assumo que aquele era um papel. Em Bakhtin assoma o conceito de assinatura, que é fazer o papel responsavelmente, ato responsável, no qual não tenho álibi de minha existência. Esse reconhecimento da unicidade de minha participação (assinatura) é a própria ação realizada, ação única minha nesse mundo.

 

Ato da Empatia

Ato necessário mas insuficiente na contemplação estética como um todo. Na contemplação estética nós "nos perdemos" inteiramente no objeto da percepção de maneira que não somos mais capazes de separar o observador da percepção.

Ato histórico

Ato realizado em um tempo particular e em um lugar particular por um indivíduo particular, ato único (once ocurrent), singular, "o um e somente".

Auto-atividade

Operação ativa do Ego, espontaneidade (Kant).

 

Barthes

"Eu não falo a língua:  a língua fala em mim". Portanto, sou porta-voz de minha formação, não tenho responsabilidade. Sob esse ponto de vista, é irrelevante qualquer discurso, pois todos os discursos estão previstos. Bakhtin não concorda, pois para existir começo, é preciso rompimento com o já dito.A noção da indeterminação na Física é difícil de se introduzir nas Ciências Humanas, pois esta só reconhece o "já dito".

 

Cadeia infinita de enunciados

Entramos na cadeia de enunciados falando, e a palavra alheia pode se transformar em palavra própria, assumimos como própria mas é dada para mim (esquecimento da origem). "Eu dou com esse mundo" em cuja cadeia infinita de enunciados há a noção de possibilidade de ruptura, de mudarmos nossas direções. O sujeito é participativo na própria interpelação e, se negasse a existência de uma estrutura prévia, não se poderia "dar com o mundo". Na cadeia infinita de enunciados, a cultura é objetiva e a vida é concreta.

 

Categoria da irreversibilidade do tempo

Nos romances de Walter Scott, Bakhtin encontra a noção cronotópica que incorpora elementos do folclore (histórico-popular), o olhar o espaço com perspectiva de temporalização. Se pensarmos o tempo como desespacializado, o tempo se torna reversível, como voltar ao tempo zero, sempre fixo, como a verdade científica (Istina- tempo da ciência moderna). Por exemplo: tomo consciência do surgimento de uma estrela depois e calculo o tempo pela noção de espaço, pela distância entre eu e ela. Assim, tempo e espaço são diferentes e não cronotópicos. Porém,  X não pode voltar a ser Y, pois o tempo é irreversível: uma molécula de água em que um cientista trabalha incorpora esse trabalho, tem historicidade.

 

Categoria de Tempo e Movimento em Goethe

Aptidão de Goethe de ver o movimento invisível do tempo, o espaço se modificando tornando a história indissociável da comunidade. Por exemplo, em Roma, um arquiteto pode olhar para as ruínas de duas formas: a) Recuperação - voltar ao "status quo ante", com olhar presente para o passado e não para o futuro, esquecendo-se de que o ambiente não é mais o mesmo; e b) Ruínas: constrói-se em cima um centro cultural em que a parte antiga é incorporada ao novo, é decoração do mesmo. Com as idéias do passado no presente, as ruínas não são um corpo estranho no presente, mas sim um lugar necessário na continuidade do tempo histórico. O passado está no presente e é produtivo, criador e ativo, funcionando como base e alavanca de uma transformação.  Uma cidade funciona como local dos poderes, como em Roma, onde a circularidade na arquitetura, as formas arredondadas, remetem à noção de eternidade do Poder Temporal e Espiritural (Coliseu, Vaticano).  Diante da ruína de uma igreja, não posso imaginar um mundo ateu.

 

As categorias de caracter, fusão do tempo, marca do tempo no espaço, tempo que remete ao lugar concreto de sua realização, a atividade criadora do tempo, o tempo ligado ao espaço e ao tempo em si, nos remetem às noções de: a) Plenitude: os locais não são neutros com relação aos acontecimentos, existe integridade e enxergar no espaço a marca do tempo que tem uma forma e dá ao espaço um sentido; e b) Necessidade: presente nas leis da criação do homem, que explicamas diferenças, por exemplo, entre os países nórdicos e a Espanha.

 

Categoria do tempo em Rousseau

Na cronotopia de Rousseau, encontramos o componente romântico, idílico, o mito do "bom selvagem", porém o tempo histórico é o da decadência. O passado é idílico, ideal, e o devir é voltar a ser o que se deixou de ser.

Categoria Sintática e Categoria Semântica

Numa frase de publicidade tal como "Compre agora e economize", a categoria sintática é um período composto por coordenação com dois verbos. Já a categoria semântica nos faz pensar em oração condicional também, devido ao significado implícito que remete ao conjunto de modos de vida: compre agora pois amanhã o preço vai subir, implicando em economia, excedente de capital para acumular, que não pode ser gasto sem necessidade.

 

Cisão da eventicidade do ser

Bakhtin oferece uma crítica à cisão da eventicidade do ser em duas partes: 1) a experiência vivida, os atos (inclusive o de pensar), realizados no mundo da vida, que é o mundo da realização da atividade, de atos realizados que são impenetráveis em sua unicidade; e 2) o mundo da cultura, mundo dos sentidos, dos atos interpretados, dos conteúdos, tratado pelo autor como uma realidade objetiva, uma unidade estruturada na atividade objetivada. A cultura é apresentada como unidade objetiva de atos objetivados. Exemplo: se dizemos "Senti dor", estamos abstraindo esse sentimento objetivamente através de um enunciado criado graças à linguagem, que é a atividade semi-estruturada da experiência vivida, pertencente ao mundo da cultura. No mundo da vida, o sentimento de dor é uma experiência vivida impenetrável, pois ninguém pode sofrer em lugar de outro. Assim, esse sentimento é único, singular e irrepetível em cada pessoa. 

 

 

A cisão de princípios entre o conteúdo semântico de um ato-atividade e a realidade histórica de sua existência (vivência real) é comum ao pensamento teórico-discursivo (filosófico e científico-naturalista), à representação-descrição histórica e à intuição estética. Essa cisão faz o ato-atividade perder o seu caráter integral e a unidade de sua constituiçao viva e sua autodeterminação.

 

Cognição

Juízo verdadeiro que afirma um valor ou nega um desvalor ("afirmação-negação" de Rickert). Para o neokantismo, é a identificação ou reconhecimento de um dever transcendente, o reconhecimento de valores ou a condenação de desvalores. Na área da cognição, se a unidade real da língua é a interação verbal, caímos na responsabilidade singular. A Arte (Literatura) é o lugar das diferenças, pois a obra de arte se diferencia dos outros objetos, inclusive na interação verbal, em que encontro um conjunto de processos: tema (único) e significação (repetição). A filosofia de Bakhtin aponta a diferença na Ciência, e não a semelhança, considerando que o ponto de abstração é apenas o pressuposto que vai da semelhança para a diferença. Questiona, assim, o modo de fazer Ciência, admitindo verdades particulares e não universais, pois reescrevemos a vida em cada Ato. ("O caminho se faz ao caminhar", verso de Antonio Machado, poeta espanhol).

 

Conquista copernicana de Kant

Para conhecer a realidade finita, empírica, essa realidade precisa de conformar à estrutura da mente humana, e não a mente à realidade. Os objetos devem ser vistos conforme o pensamento humano. Trata-se de um conceito de "consciência universal". Kant definia a razão enquanto fórmula do raciocínio. Nos anos 20, essa filosofia colocava a ciência (mundo teórico) como justificável e inviolável (o real é o que enxergo). Para Bakhtin, é o mundo da estrutura que quer se passar como o todo, pois a descoberta de um elemento "a priori" em nossa cognição não abre um caminho para fora da cognição. É preciso criar um subjectum teórico para essa auto-atividade transcendente, um subjectum historicamente não-real. São sem esperança as tentativas de superar, de dentro da cognição teórica, o dualismo da cognição e da vida, o dualismo do pensamento e da realidade única concreta. À medida que entramos no conteúdo destacado do ato cognitivo (ato de abstração), somos controlados por suas leis autônomas. Assim, não estamos mais presentes nele como seres humanos individualmente e responsavelmente ativos.

 

Consumidor e Usuário

Se vivo como consumidor, vivo uma vida desencarnada, prevista pela cultura de massa, ao contrário do usuário, que faz seus caminhos, suas táticas. Qualquer peça de um conjunto tratado como massa é substituível. Os sistemas de avaliação dos consumidores não incorporam os processos de vida. O consumidor é passivo, enquanto que o usuário transforma o produto em instrumento de nova produção.

 

Contemplação estética

Uma obra é estética quando há um acabamento. A contemplação estética é holística (enxerga o todo). Na unicidade do ato da contemplação, sabemos se uma obra é clássica (começamos a dar sentido), enxergamos a beleza (é bela), e no olhar construímos o objeto. A visão estética (estetização) é a tentativa de lançar-se no não-ser, pretende ser uma visão filosófica do ser unitário e único em sua eventicidade e está condenada a fazer passar uma parte abastratamente isolada  como o todo real. A filosofia do esteticismo põe dentro do Eu a contemplação. Para Bakhtin, ao contrário, compreender o objeto é compreender o meu dever em relação a ele (Responsabilidade). O conteúdo da contemplação é dado pela cultura (conjunto de categorias, mas o Ser contemplativo é o lugar para onde me desloco quando dou sentido ao objeto, e volto subsumido pelo ser-único-em-evento, e volto enriquecido, com responsabilidade, com pensamento participativo.Na decisão que tomo, tenho responsabilidade frente a um horizonte de possibilidades (faço, não faço).  Esse Ser da contemplação estética sou eu mesmo e não sou eu. Devo compreender o objeto em relação ao meu ser (evento único).

 

 

Analisando o mundo da visão estética, percebemos que o mundo da Arte está mais perto do mundo unitário e único. No romance, o ser humano é representado por um herói. Como no poema "Separação", escrito em 1830 por Pushkin, há dois centros de valores, dois centros reais e concretos: o herói e a heroína. O centro dela é subsumido pelo autor-herói e, pela interpenetração dos dois centros, do ponto de vista dele a pátria é distante (Itália) e esta terra é estrangeira, porque do ponto de vista dele ela está partindo. Ela está retornando, mas ele transforma o retorno em partida. Como leitor sou observador desses dois centros, pois estou fora de mim e observando quem está fora de mim (exotopia em relação ao autor e ao herói). O retorno a mim mesmo é conseqüência da leitura, e traz algo para minha formação. O que eu sou subsume o meu eu-leitor, que subsumiu os outros centros de valores (herói, narrador). Esse objeto, do ponto de vista de seu conteúdo, será único para cada leitor (empatia estética). É inescapável que a recepção se encontra na exotopia. Assim, a crítica literária sempre se constitui numa disciplina prática, não científica.

 

Crise dos paradigmas contemporâneos

Se na singularidade a verdade adquire peso no nível do evento (Pravda), será que temos que abandonar a garantia dos enunciados da ciência ? Será que temos que apostar mais nas enunciações do que nos enunciados (verdades transitórias) ? Bakhtin assume um contra-método e nos leva a perguntar o que é "conhecer" e como dar conta do "conhecer" diferente do "viver". A história da Ciência é a história do método e o questionamento ao modo de fazer ciência nos leva à perda das garantias. . Ex: o método de construção da trama na literatura policial em que, a partir de indícios descobrimos quem é o  autor do quadro ou do crime, e há um só ponto de solução para o enigma. Para enxergar indícios, deve haver uma hipótese: a dúvida. No discurso da interação, temos um conjunto heteróclito de indícios, em que todos eles indicam para todos. A saída metodológica pelos paradigmas indiciários na literatura leva à solução do enigma, mas na unicidade do ato cada uma das possibilidades é singular.

 

Considerando-se a cultura como produto dos atos da vida, a crise contemporânea se deve ao abismo entre o motivo do ato realizado e seu produto, uma vez que de dentro do produto não se corrige o ato praticado sem o conflito de interesses, sem antagonismos ou respeitando-se o interesse mútuo. Somente a responsabilidade pode dar conta da cisão desses dois mundos: o da vida e o da cultura. Assim, todo enunciado universal não é essencial para o momento da concretude, pois o universal não explica o singular. Bakhtin valoriza a experiência singular e única,  indicando que a experiência de excluirmos a experiência trouxe desencanto (crise dos paradigmas).

 

Cronotopia

 As questões cronotópicas são questões do tempo e espaço na literatura e estética. Na tipologia, a natureza aparece como estática nos romances de viagens e como pano de fundo nos romances de provas. Nas biografias o tempo é o ciclo de vida do sujeito, e no romance de formação, encontramos vários tipos de conseqüências dos outros três, como no Realismo do Século XVIII. A visão do tempo na antiguidade se dava pelo ciclo das estações (circularidade = Fênix). Goethe introduz a noção de enxergar o tempo na natureza, que não é estática e contém as marcas do correr do tempo. O espaço adquire do tempo histórico as marcas, é marcado por indícios do passado e do presente. O passado diante de mim, marcado na natureza pela criação do homem. O artista decifra os desígnios mais complexos do homem: criações, ruas, casas. O tempo não é só cíclico, mas histórico. Essa descoberta de Goethe é elogiada por Bakhtin, é a humanização do humano.

 

 

O tempo cíclico se resolve na imutabilidade, a morte produz vida, o que permite o desenvolvimento do romance realista. Ex: A festa de São João retorna todo ano, o tempo cíclico se renova e permanece o mesmo, mas a festa deste ano é a soma de todas as outras. Cronotopos, como leitura do tempo e espaço, é uma crítica à idéia de classificação dos fenômenos quando introduz o conceito de multitemporalidade. Não vê o processo de classificação por justaposição, mas sim por filiação.

 

Deixis

As categorias dêiticas alto, acima, abaixo, finalmente (deixis espaciais e temporais) e outras expressões dependem de conceitos ou do contexto. Ex: João e Paulo têm a mesma altura: ambos são anões. João é tão alto quanto Pedro: têm 1,90 m.

Denotação e Conotação

A denotação está associada ao mundo da cultura, e a conotação ao sentido no ato concreto. Para Bakhtin, o trabalho do ato denota as conotações. No trabalho poético , no trabalho não referencial, não pragmático "conotativo', denotamos a conotação todo o tempo, pois o ato concreto da contemplação estética é denotativo.

 

Determinação da teoria pela vida prática, e da vida prática pela teoria.

Para Bakhtin, qualquer espécie de orientação prática da minha vida é impossível no interior do mundo teórico. A verdade teórica é um processo no interior da teoria com suas categorias de validade. A teoria pode estabelecer verdades eternas universais, mas só naquela teoria. Ex: para Ptolomeu, o sol girava em torno da Terra. Toda teoria sonha com um mundo para sua realização (teoria para a prática), mas a vida prática (inacabada) interfere na teoria. Bakhtin não funda uma estética com base analítica prévia pois o ato concreto não é um reflexo, mas sim o fundamentos dos valores, e não o oposto. Assim, os valores são produtos históricos dos atos concretos. O ser humano é o centro real, concreto, tanto espacial como temporal.

 

Deus de Bakhtin

Interpretação de base religiosa: a inter-relação se dá no evento do Ser em processo. Ser é o lugar do sujeito da empatia; o Ser em processo é o ser unitário em evento, dentro do qual me determino, é "Deus", em que determino a relação eu-outro. Na religião, Deus é "Aquilo que É", mas em Bakhtin, é "o Que É-em processo", a visão de um Deus que evolui. Deus pode me instituir, mas o homem pode criar Deus como hipótese necessária. (Ver "Ser Único").

 

Dever

Aquilo que deve ser (dever), o que é (eu devo), é colocado diante da vontade como válido e assim funciona como um chamado ou como uma imposição à ação. Para Kant, as máximas são leis universais porque a forma da máxima é uma proposição teórica, é "dever", é algum modo de "é", imperativo com conteúdo em virtude do qual ele é endereçado a uma pessoa motivada por um desejo subjetivo específico.

 

 

O "princípio do dever" ou "obrigação" abstratos tem demonstrado uma perversidade assustadora, pois demonstrou não haver nada na mente para impedí-lo de conceber o dever como o dever-ser na ausência de qualquer dever (Nietsche). A ética absolutizada é incapaz de sair do confinamento de um círculo lógico. Qualquer motivação real será "extra-ética". Uma pessoa que escolheu ser "ética" não é particularmente boa, amável. É autocomplacente (egocêntrica) ou auto-acusatória (também egocêntrica). Essa ética solitária é um modo de relacionar-se com valores, e não uma fonte de valores. O dever como a mais alta categoria formal é um equívoco, pois a correção técnica não resolve a questão de seu valor moral. O dever, no mundo da vida, é ligado à responsabilidade. Para a teoria, ele pode ser um juízo válido ou não válido, verossímil ou inverossímil, verdadeiro ou falso. A afirmação de um juízo como verdadeiro é relacioná-lo a uma certa unidade teórica, e essa unidade não é a única unidade histórica de minha vida. O dever funda a presença real de um juízo dado sob dadas condições na consciência, na concretude histórica de um fato individual, mas não funda a teórica veridicidade em si.

Dever da veridicidade

Não decorre da determinação teórico-cognitiva da veridicidade, pois o momento do dever-ser pode apenas ser introduzido de fora e fixado nela (Husserl). Não existe dever estético, científico e dever ético: há apenas aquilo que é esteticamente, teoricamente, socialmente válido. Tais validades são instrumentos do dever. O dever ganha validade dentro da unicidade de minha vida responsável e única. O dever não tem um determinado conteúdo, não tem um conteúdo especificamente teórico. O que se chamam "normas éticas" são asserções sociais, ou seja, tudo o que possui validade fornece o chão para várias disciplinas especiais, nada sobrando para a ética. Não existem normas morais que sejam determinadas e válidas em si como normas morais. Existe sim um sujeito moral com uma determinada estrutura.

 

Devir

Estamos na vida sem um álibi, em eterno vir-a-ser. Todo ato contém uma ética e uma estética, revela uma cognição, um modo de ver o mundo. O modo de falar o mundo, significar o mundo ontológicamente, dizer essencialidades, definir pelas essencialidades. No ato responsável, definimos nossa vida por modos ontológicos (como vivemos?) e não processuais (o que é" viver"?). São as respostas que damos no mundo da vida que concretizam o mundo da cultura. Pelo conceito de "memória do futuro" , o passado está à minha frente, o futuro está dentro de mim, é o que está a se realizar (devir).

 

Emergência dos mecanismos

Foucault estudou a emergência dos mecanismos: como surgiram e se modificaram historicamente, o papel do poder, as marcas do poder em nós, a irrecusabilidade da teoria de que as relações entre os homens são relações de poder (ver "História da Sexualidade).

 

Ensaio e erro

 Na época contemporânea, os sistemas de computação estão nos colocando questões que havíamos esquecido, como a do "ensaio e erro". A única categoria em que essa questão aparecia era no diagnóstico médico. As crianças também nos têm  mostrado essa questão.

 

Epistemologia

Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos, o valor e o alcance objetivo delas.

Equipolentes

Que têm o mesmo valor.

Estrutura do mundo

A "Estrutura" ou "Construção", ou organização do mundo-evento é "arquitetônica", resulta da interrelação arquitetônica. As relações-eventos, ou relações entre eventos têm o caráter de "devir" (eventos em processo).

Ética

Para Bakhtin, a ilusão da ética absoluta e auto-suficiente, a consciência da "intelligentsia", ou o domínio da "ética como tal", da "ética pura", é apenas uma certa posição formal. Inquire sobre o conteúdo "material" dessa posição, o que deve fazer o sujeito, e em relação a que, ou seja, no que o "dever" em si está baseado. Essa "ética" é fundada pelo fato do dever, é dependente dele. Na área da Ética, Bakhtin aposta no singular, e na área da Estética, aposta só no singular.

 

Evento do ser

O evento do ser é um conceito fenomenológico, por estar presente ele mesmo em uma consciência viva como um evento (em processo) e uma consciência viva orienta-se ativamente e vive nele como um evento(em processo). O ser é um evento em processo (eventicidade).

 

Exotopia

Excedente de visão pelo lugar que ocupo.

Expressibilidade do ato

A linguagem cresceu a serviço do pensamento participativo e dos atos realizados. A Verdade (Pravda), a verdade do evento, a experiência que me afeta, pode ser alcançada e comunicada. (Benjamin/ Jorge Larossa). Mais do  que racional, a verdade é responsável e comunicável. O ato é expressível, ou seja, o saber feito de experiência é transmissível. O modo de ser transmitido não é pela racionalidade da expressão, mas pela experiência do ouvinte.

 

Expressibilidade do valor

A palavra expressa, por sua entonação, minha atitude valorativa. A palavra, mais do que representar, contém uma atitude de valoração do objeto referido (Retórica - "Ethos" do orador, além do "dispositio" que  é a organização do discurso). Uma verdade nada vale sem o sentimento de verdade. Nada é mais vazio do que uma verdade sem esse sentimento (entonação).

 

Fenomenologia de Husserl

Para Edmundo Husserl (1859-1938), a luta obrigatória pela verdade não pode ser derivada da epistemologia. Expressa reação ao "Psicologismo" que acreditava que, sob a base de uma doutrina, sobre uma parte do "real", é possível formar o conceito do "todo" do mundo teórico. O conceito da unidade indivisível da experiência vivida e a intenção contida nela(evento, eventicidade ações realizadas) é similar aos conceitos-chaves de Bakhtin, mas este acentua o problema da responsabilidade.

 

Fidelidade da experiência

Toda análise do discurso que procura o que é repetível não conta a verdade do discurso. A verdade  (Pravda) é algo a ser alcançado.

Filosofia contemporânea da vida

Estetização da vida que dissimula a desconformidade evidente do teoretismo puro, pois significa a inclusão do grande mundo teórico no "pequeno mundozinho" também teórico da fusão de elementos teóricos e estéticos, como na filosofia de Bergson. O ponto fraco reside na indivisão metódica dos elementos heterogêneos da concepção. A filosofia da intuição é confusa, embora a intuição seja elemento necessário da cognição racional (teoretismo). Para Bergson, restaria a contemplação estética pura (dose homeopática do pensamento participante real). Para Bakhtin, o ser-evento único em sua unicidade escapa da contemplação estética ( o produto desta fica abstraído do ato real da contemplação). O mundo da visão estética, fora da relação com o sujeito real da visão, não é real, embora seu conteúdo semântico esteja inserido no sujeito vivo.

 

Filosofia da Cultura

Classificação histórica das filosofias.

Filosofia da Vida (Henry Bergson)

Ramo da Filosofia que define a realidade absoluta como "Vida", opondo a realidade viva irracional, percebida através da experiência vivida ou através da intuição, àquele modo do ser que foi formado pela cognição abstrata e analítico-intelectual. Intuível-palpável é o oposto de conceitual ou abstrato.  Filosofia impensável para o materialismo e positivismo do Século XIX, por valorizar os momentos da experiência imediata da alma mais compreensiva (desde Schelling). Para Bakhtin, a Filosofia da Vida inclui o mundo teórico no interior da unidade da vida-em-processo-de-devir, mas não passa de uma estetização da vida. A obra estética tem uma categoria de acabamento, mas a vida só tem um devir em cada um de nós. Em Bergson, tenta-se encontrar através da afetividade o sentido (Ser), mas assim ele é reduzido a uma determinação estético-teórica. Para Bergson, o sujeito é determinado por uma teoria, não condicionado pelas suas condições, e assim opõe a intuição filosófica à cognição intelectual, analítica, mostrando que a saída é assumir a visão estética. Para Bakhtin, a vida de cada ser é menor do que a teoria, mas somos mais do que a teoria prevê.

 

Filosofia do Ato

A Filosofia do Ato de Bakhtin seria uma introdução a um tratado de Filosofia Moral (Prima Filosofia), na qual a sustentabilidade não seria o conjunto de confissões, mas a alteridade: seu objeto é a relação do eu-para-mim, outro-para-mim, eu-para-outro. Normalmente a Ética não parte da concretude de um ato, mas de uma abstração (valores universais). Associamos a concretude ao conceito jurídico de tipificação de um ato, ou à ocorrência de um enunciado típico (type talking).

 

Filosofia niilista de Nietsche

Nietsche pode ser considerado anti-platônico e anti-cristão, agressivo e niilista, exalta a "vida" como aparência e ilusão, repudiando o "mundo verdadeiro" do 'invisível e imutável ser espiritual". O conceito do "eterno retorno" opõe-se à concepção européia de progresso. A vida é aceita como ilusão, ausência essencial e fundamental de significado e que provoca êxtase orgiástico (dionisíaco)

 

Filosofia primeira de Aristóteles

Ontologia fundamental, ciência que investiga o ser e os atributos que pertencem a ele em virtude de sua própria natureza. A prova ontológica da existência de Deus é que ela decorre necessariamente do conceito de Deus. Expressa a luta contra a construção lógica do sujeito puramente cognitivo, tendo em vista as relações participantes agindo sob o sentido da liberdade, a compreensão dos objetos envolvidos partilhando-os ou simpatizando com eles.

 

Forma

Unidade de ordenação, "a priori" de um complexo sensível.

Função da Arte

A arte, quando tem uma função, deixa de ser arte. Por exemplo, a utilização da cultura clássica pelo Nazismo. Pela perspectiva do monismo, definimos o ruim pelo conceito de bom (relação entre opostos), portanto se há um mau poeta é porque existe um mau leitor.

 

Fusão entre passado e presente

Crítica do fantasma romântico, joga para o componente realista e no final dá uma definição do caráter cronotópico, marcando o ponto de vista do homem contemplador, na lógica inexorável de sua existência histórico-geográfica. A criação do homem tem finalidades cívicas, políticas humanas, e necessidade de coerência com o espaço em que se está (coerência entre o mundo da vida e da cultura).

 

Generalizar

Universalizar, tornar genérico.

Gêneros literários

Os gêneros são desenvolvidos em função da complexidade da sociedade. Assim, quanto mais complexas as sociedades, mais gêneros há. O gênero primário é o diálogo face a face. O gênero secundário é a escrita (carta e romance , que por sua vez, são primários do romance epistolar). O gênero Anotação não tem sentido fora da sala de aula., cujo gênero primário é o conjunto de outros gêneros.No século XIX a moda era a Botânica, gênero essencialmente classificatório. Nas sociedades mais complexas, identificamos o gênero terciário, que poderia ser a retomada e a consciência da retomada dos gêneros primários, o hipertexto (ver trabalhos de Antonio Carlos Xavier). Há gêneros que apresentam uma circularidade (circulação) entre os gêneros erudito e popular. O gênero de Goethe é o discurso da mobilidade, do não estático. Uma das categorias essenciais em Bakhtin é que o pensamento não resulta do estudo da literatura, mas traz para o seu pensamento várias categorias de adensamento. Assim, busca na fala de Goethe uma categoria que interessa ao seu pensamento.

 

Habituação estética

A habituação estética é objetivante, não é pura nem isenta, não garante o conhecimento do ser único na sua eventualidade, mas apenas a visão estética de um sujeito indeterminado em sua passividade. Para Bakhtin, compreender o objeto é compreender o meu dever em relação a ele (meu postulado moral).

 

Imagens ou configurações

São as formações derivadas.

Implicitação (subentendidos)

Todos os sentidos são conseqüência do que é dito, por quem é dito, para quem é dito (alteridade). Os efeitos são a soma de todo o contexto. O autor é responsável pelos implícitos. Dicro corresponde ao cálculo do que é implicitado que é responsabilidade do ouvinte, e não do autor. Se dizemos "O atual Rei da França é calvo" (não existe Rei da França), digo-o em função do contexto pragmático e o ouvinte extrai um sentido pelo qual não sou responsável. A implicatura pressupõe a conversação e explorando a regra quero dizer a implicatura (princípio de relevância).

 

Insatisfação com as filosofias modernas

A insatisfação com a filosofia moderna leva os adeptos a recorrerem ao materialismo histórico, que se esforça em construir seu mundo de tal modo a reservar um lugar nele para a execução de ações reais determinadas, concretamente históricas.Outros procuram satisfação na teosofia, na antroposofia e em outras doutrinas similares.

 

Interação estética

A relação autor-contemplador está prevista na criação, mas pode não se realizar no contemplador. A interação no processo de construção se dá entre Autor-Herói-Ouvinte. O processo é social, não tem nada a ver com a Psicologia. No processo de contemplação, a interação se dá entre Ouvinte (contemplador) - Autor - Obra. Nessa posição, o contemplador é ao mesmo tempo um sujeito físico e um ouvinte genérico (antropomorfizado). O contemplador não define se é Arte ou não (nem o Autor). O processo de construção do objeto implica na relação Autor-Herói-Ouvinte, explicitação dos presumidos, usos metafóricos, produção de estranhamento. Toda obra estética está vinculada às condições reais de vida, de sua produção. Se não saímos enriquecidos, transformados pela contemplação estética, então o objeto é trivial (saímos empobrecidos). O valor não é calculado a partir da validade intrínseca da obra de arte, mas sim com relação ao devir. A trivialidade da vida produz objetos triviais, estéreis, direcionados a consumidores, e não a usuários.

 

Interconexão

Conexão com o mundo da cultura de dentro do evento, que só pode se dar em mim, no ato. Os conceitos têm acoragens históricas diferentes para cada um. Se essas ancoragens variam, o conceito não é fundamental, mas por isso mesmo é essencial. O elemento que dá a conexão é o tom emocional-volitivo, que tem a ver com a alteridade, o livro arbítrio e a responsabilidade. É inconsistente pensar que a cultura separa o sentido das coisas, pois o mundo cultural e simbólico não está fora da natureza (é natural atribuirmos significados).

Juízo de valor

A construção de um juízo de valor, que é uma atribuição de valores, não esgota a experiência vivida, já que se constitui num ato individual de pensamento. O ato de pensar em caminhar enquanto se caminha dá sentido ao ato de caminhar, é constituinte desse ato, mas é um mero encadeamento formal. "Valorativo" é todo juízo que expressa valor.Submetemos um objeto ao plano valorativo do "Outro": Ele é caro para mim (eu o amo), não porque ele é bom, mas ele é bom porque é caro para mim. O amor desinteressado transforma o herói no objeto de uma tensão amorosa interessada. A forma de um juízo, que é o momento transcendente na composição de um juízo, constitui o momento da atividade de nossa razão: somos nós que produzimos as categorias de síntese.Se o juízo é desligado da unidade histórica do ato-procedimento real, e remetido para uma determinada unidade teórica, na sua faceta semântica não há lugar para o dever e para o evento real e único do ser. A tentativa de ultrapassar o dualismo é infecunda. O conteúdo isolado do ato cognitivo se desenvolve por livre arbítrio, lei autônoma que nos coloca fora do ato pela abstração, como responsáveis e individualmente ativos.

 

Justificidade

Qualidade de ser justificado teoricamente ("Aja segundo a máxima que você possa ao mesmo tempo desejar que  se torne uma lei universal, fazendo uma lei universal através de sua máxima"). Assim, uma máxima é o princípio funcional da ação, a fundação real de nosso ato.

 

Linguagem e Futebol

O futebol comparado com a Linguagem:  Fonema (o movimento), Sentença (jogada), Texto (partida), Discurso (futebol) e Segmento (jogo).

Maria Zambrano

(1904-1991)

"Todo homem é uma promessa : a de realização de si mesmo".

Momento

O momento é tratado como o constituinte de um todo dinâmico.

Mundo da Teoria

Conjunto de princípios e orientações. A teoria é acabada, fechada, e não pode explicar o mundo inacabado, interativo, que se transforma em ações realizadas. Ex: na análise do discurso, a superfície textual é paráfrase de outra, que é de outra, e assim por diante, e as diferenças não são significativas, pois o discurso se reduz ao "já dito".A unicidade não se dá no mundo da teoria e a dúvida é um valor distintivo.

 

Não-álibi no Ser

Não posso ser aliviado da responsabilidade pela execução de um ato por um Álibi.("Eu estava no lugar da execução desse ato").

Ontologia

Estudo das essencialidades, das fixações - metáfora das raízes.

Oposição a Platão

A imutabilidade do "verdadeiramente existente' é oposta à mutabilidade do que "apenas parece existir" (não objetiva, uma simples constatação). Há diferença entre níveis ontológicos: pela escolha ativa, um ser humano deve fugir do que apenas parece e procurar alcançar o que é verdadeiro. Mito da Caverna: só vemos a sombra, a sombra que é o mundo real. Para Bakhtin, essa teoria é um rascunho grosseiro em relação ao ato único, apenas o seu sentido abstrato. Cada ação praticada reescreve a vida na forma de ação definitiva. No entanto, "definitiva" é definição, não tem nada a ver com completude. . No mundo das idéias de Platão, o essencial não é visível aos olhos. No entanto, o Deus invisível criou o mundo visível, então temos que ter o cuidado de olhar para o visível, a natureza.

 

Par mínimo

Na Língua, a mudança de um traço muda o sentido da palavra. A sonoridade da Língua Portuguesa é fonêmica (pato / bato).

Pensamento participativo

Pensamento engajado, compromissado, envolvido, relacionado, "interessado", não-indiferente. Na Teologia, prevalece a noção de conceito de onde se tira o real. Ex: no século XV, Santo Anselmo pregava que, se podemos imaginar um Ser Perfeito, então esse Ser existe (prova da existência de Deus). Para Kant, ao contrário, não podemos tirar de um conceito inadequado a existência do real. O conceito é maior que o real, acrescenta coisas ao real, ou seja, é inadequado. Em Bakhtin o pensamento participativo é o adensamento do princípio do não-álibi da existência: na minha existência eu participo, ocupo um lugar no meu ser (ser-evento único), coletivo, que implica em categorias substantivas (substância) e não atributos. Ocupo um lugar no Ser único coletivo e irrepetível (como o conceito de Deus), um lugar que não pode ser ocupado por outro, e imprevisível, porque se estivesse previsto o meu lugar nesse Ser Único eu não teria responsabilidade. Assim, não posso construir um álibi para minha existência.

 

Possibilidade contingente

Possibilidade fortuita ou causal. Para Bakhtin, eu existo no mundo da realidade inescapável e não no mundo da possibilidade contingente (do fortuito).

Postuplenie

Termo em russo que representa a realização única, contínua, de atos ou ações individualmente responsáveis.

 

Um de todos aqueles atos que fazem de minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos, que compõem a vida como ação-realizada, em contínua realização. A vida inteira é um complexo ato ou ação singular, em que os momentos conteúdo-sentido e histórico-individual são unitários e indivisíveis.

 

Postupochnaia

Relizador, capaz de realizar.

Postupok - Ato responsável

Ato ou ação intencionalmente realizada por alguém, ou, meu próprio ato ou ação individualmente responsável, singular e único, ato de dever do pensamento. "Fato post factum" é o termo que designa o ato que já foi realizado. O ato é vivo, integral, inexorável, ligado ao ser-evento único e singular (participante vivo e real do evento). A faceta semântica do ato é autodeterminar-se na unidade do domínio semântico da Ciência, Arte e História, que são domínios objetivos que comungam com o ato. O Ato, como Jano Bifronte, olha em sentidos opostos: para a unidade objetiva do domínio cultural e para a singularidade irrepetível da experiência. Ambas as faces só se definem em relação a uma unidade singular no evento único do ser realizável: o teórico e o estético devem ser definidos como seus elementos.

 

Pragmatismo

É uma instância similar ao teoreticismo, que incorpora a cognição teórica na vida única do ser, concebido em categorias biológicas, econômicas e outras, em que dos atos sai-se para a teoria.

 

Pravda e Istina

Pravda é o Conceito de VERDADE com Responsabilidade, com validade, verdade a ser alcançada na realização, associado à categoria marxista da totalidade,  à responsabilidade dentro do próprio ato, inescapável, irrevogável e irremediável no contexto em que o realizo. Istina é o conceito verdadeiro válido em si, como por exemplo a verdade de um enunciado. Istina pode ser supostamente o real, mas a verdadeira realidade da língua é abstrata: "La Langue". O gesto de dizer "X é Y" ocorre quando me desloco para o lugar ocupado pelo sujeito da pesquisa, e esse deslocamento pode dar a "iluminação de um relâmpago".  Uma verdade autônoma do pensamento pode ser apresentada como Pravda, mas é Istina. . Pravda exige como seu complemento a dúvida. Somos remetidos à descontinuidade das formações discursivas (inflexão no interior da forma discursiva), assim como à descontinuidade das descobertas. Todo o processo de construção da ciência moderna afastou a ética, pois fala do real (Istina) e é conceito abstrato, não essencial ao ato singular, único, responsável. Quando transformamos a verdade autônoma (Istina) em verdade de cognição, sua validade a transforma em Pravda.

 

Preocupação de Bakhtin com o concreto

A interação concreta tem lugar na vida e na Língua, nos atos em que a unidade da eventicidade do ser pode ser rompida a partir de três possibilidades: 1) o pensamento teórico discursivo, 2) a descrição-exposição narrativa (histórica) e 3) a intuição estética.

 

Produto da atividade estética

É participante do ser-evento real (realizado ou encarnado) através da mediação de nossos atos de efetiva intuição estética. Ao vivenciarmos um produto da atividade estética (objetos dados como acabados), há um momento de deslocamento do Eu para a posição de "sujeito da empatia" no mundo da contemplação. O sujeito é subsumido pelo Eu e volta enriquecido. Esse enriquecimento é um processo de humanização do humano, que pode ser considerado como o encontro de minha responsabilidade enquanto unidade centro de sentido e o não álibi do ser em evento (devir).

 

Psicologismo

Considerado grosseiro por Bakhtin, pois o ato cognitivo em si não se reduz ao sentido dado pela psicologia. Ex: estudos psicológicos da obra literária.

Questão 1 - Método das Ciências

Se o cognitivo é uma variante do social e se o que sabemos sobre um corpo físico qualquer é da ordem do cognitivo, então como fica a divisão entre ciências da natureza e ciências sociais e humanas? Resposta: em uma fórmula científica para qualquer esfera, a ideologia deve ser encontrada com métodos sociológicos. Na esfera da ciências da ideologia, é impossível o rigor e a precisão das ciências humanas, mas o método sociológico chegou perto. As ciências da natureza dizem respeito também a seres que estão fora do humano (corpos físicos e químicos). Os objetos das ciências da natureza estão dentro e fora da socidade humana (leis), mas essas ciências não podem ser deixadas às suas leis imanentes. As leis chegam aos corpos de fora, por definição cognitiva dos corpos da natureza. Já as ciências sociais e humanas se justificam só por e para a sociedade, dentro da sociedade. Assim, as formações ideológicas são interna e imanentemente sociológicas, dentro do processo dialógico (Ex: Direito). A divisão entre os métodos é sustentada pela diferença dos objetos:  os objetos empíricos definem métodos para si mesmos; a linguagem é o método das ciências humanas.

 

 

O problema para Bakhtin parte da separação entre Cultura (arte, ciências, etc...) e Vida, mais a Comunicação (relação com o Outro - estética). O objeto de arte não tem imanência própria e pensamos a obra de arte no contexto da comunicação estética, entre sujeitos. O método sociológico é adequado para estudar fenômenos ideológicos humanos (por e para a sociedade). Não pode se dar o mesmo rigor dos métodos científicos. A ciência parte da cultura, e não dos objetos. Nas ciências humanas a maior exatidão é atribuída à época, e do mesmo modo atribuímos à época a maior aproximação das ciências da natureza. Se não posso ter outro método que não seja o científico (sociológico), o conhecimento que produzo sobre os objetos só existem como cognição humana. Assim, todo conhecimento está subordinado à sociologia (primeiros rudimentos para mostrar que ciências exatas são humanas, incluindo a ciência como objeto da sociologia). Ex: raramente num curso de Física há um curso de metodologia científica (Ciências Humanas), para que leve o aluno a refletir que ciências exatas são ciências humanas.

Questão 2 - Noção de conclusão plena.

Se a obra de arte é da ordem da comunicação artística e ela se realiza (conclui plenamente) na criação e na permanente recriação, não requerendo outras objetivações, mas participa da corrente única da vida social, como compreender a noção de conclusão plena ?  Resposta: Se o enunciado não estiver completo, não poderá haver interação (recriação) completa. Deve haver acabamento para que possa haver visão holística que leve à conclusão da interação, ato que torna aquela obra uma coisa "artística". A conclusão só pode ser compreendida como Pravda, dentro da cadeia infinita de enunciados, pois se dá num momento único. O objeto de arte, sendo acabado, permite ser recriado. Ressalta-se a diferença entre "recriar" e "completar".

 

Questão 3 - Relação responsável pela construção

Se o modo de interação Que. "fixa" uma obra de arte ("a comunicação estética organiza uma obra de arte"), então é a relação específica responsável pela construção: a) Esta relação está prevista na criação?  Poderia não estar prevista e face aos modos de relação poder vir a ser considerada "obra de arte"? (Ex: os Cantos Védicos, ou as esculturas da Ilha de Páscoa, ou os mitos Tapajônicos.).b)  Quando prevista na criação e não realizada na recepção, como é que fica ?. Resposta:  Se todo artista vislumbra um interlocutor no processo de criação, então a relação está prevista nesse processo mas pode não se realizar como prevista, mas sim no processo de interação é que haverá suas realizações possíveis. No caso dos Cantos Védicos, das Esculturas de Páscoa e nos mitos Tapajônicos, o acabamento lhes confere o status de obra acabada: rima, entonação, simetria da escultura, desenhos na cerâmica.

 

 

Partimos do pressuposto de que o processo de comunicação artística organiza a obra de arte. Esse processo participa da corrente contínua da vida social, é sua característica. A diferença é que no discurso da poesia não se pode tomar o presumido como totalmente presumido. Na vida o pressuposto é extra-verbal. A comunicação estética expõe o presumido, tem acabamento mas não se fecha. Na arte temos que explicitar um conjunto de valores (não tudo). Por exemplo, nos poemas modernos as relações não são expressas entre os versos (não há "porquês", elementos de coesão textual). Mas a ausência de explicitação é a presença do ausente. Toda e qualquer análise do discurso quer explicitar o conjunto de valores. Assim, não há enunciado estético sem explicitação de valores.

Questão 4 - Constância dos presumidos

Quanto mais amplos os horizontes, mais permanentes e constantes são os presumidos no discurso da vida, a que fenômeno isso pode remeter ? Resposta: Remete ao fenômeno da Naturalização Cultural, pois o mais constante e permanente é naturalizado. Temporalizamos a biologia: descanso à noite, almoço, jantar, como se fosse biológica a sua existência. Por esse processo construímos as abstrações, produzimos o estranhamento explicitando um valor que nos parece óbvio. Os temas tratados por aqueles que têm a fala permitida: professores, médicos, padres, sempre têm valor pois seus discursos estão naturalizados culturalmente. A poesia e a arte se perguntam o tempo todo "Quem somos nós?" e, ao explicitarem esses valores produzem estranhamento no leitor. Ultrapassam o nível das exposições ideológicas do tipo "nós somos assim".

 

Questão 5 - Valoração determinando a seleção

Se uma palavra, por seu conteúdo semântico não pré-determina a entonação, como explicar que a valorização (valoração=apreciação) determina a seleção da palavra ? Resposta: a categoria básica é a interação, que remete a uma relação entre parceiros (dialógica, dissenso). Nas interações o que fazemos são julgamentos de valor, fazemos sobre esse mundo valorações que se dão nas interações. Tem a ver com o contexto, inclusive certas valorações naturalizadas. Não é o item lexical que define a escolha, mas a interação determina a seleção das palavras. Se há valoração e critérios de seleção é porque os itens lexicais se revestem de valores. A valoração se revela pela entonação, mediante a entonação. O signo é sempre ideológico e assim se reveste de valorações. Ex: a palavra 'bem" é mais ou menos neutra. Onde se usa "bem", não se usa "mal". Não usamos qualquer signo para qualquer entonação. As palavras são "comprometidas", têm compromisso. O que importa é "por que apareceu este signo e não outro". As construções são neutras enquanto construções nossas, pois posso selecionar. No processo literário isso é exemplificado pela construção da metáfora.

 

 

A literatura produz estranhamento por explicitar demais a naturalização cultural. Ao escolher o item lexical que contradiz a valoração, produzo o estranhamento. Assim a linguagem estética é produtora da desnaturalização da linguagem. Ex: palavras como "esclarecer", "obscuro", "judiação", o verbo "dar" no passado (Deu para eu passar de ano. Pare de encher o tanque que já deu). No sistema pronominal, a segunda pessoa do singular VOCÊ  (de Vossa Mercê, Vosmecê) é conjugada na 3ª Pessoa do singular. Toda escrita tem o caráter de explicitar contextos, desvendar o presumido. Uma só palavra pode ser dita com entonações diferentes (Vaya=vá lá - verbo tratado como advérbio, expressão adverbial, quase uma interjeição). O dêitico flecha algo no nosso mundo cultural, tem sentido histórico, julgamento valorativo sobre o contexto cultural. Se dissermos "Olha, está nevando!", expressamos uma representação do fenômeno natural. Se dissermos "Olha, ainda está nevando!", o dêitico flecha nas perspectivas culturais, "já era para ter parado de nevar".

Questão 6 - Diferenças entre o discurso da Vida e o discurso da Poesia.

Qual a diferença entre o discurso na vida e o discurso na poesia se em ambos há um jogo a três ? Resposta: No discurso da vida o falante e o ouvinte (contemplador) são co-partícipes do processo estético. O assunto (ele, de fora). No discurso da arte temos o Autor, o Herói (ele) e o Ouvinte contemplador, que é a voz social incorporada pelo autor a si mesmo. Assim, na Arte, o Ouvinte não é trazido ao processo estético, ele é do processo estético. O público (mercado) não é ouvinte nem contemplador. Se o autor ouvisse o público, só repisaria valores. Assim, na Literatura, a relação autor-herói-ouvinte se dá num sujeito social só, o autor, exemplo da dispersão do sujeito. Somos os primeiros leitores de nós mesmos, e os primeiros contempladores. Portanto, há três grandes diferenças entre o discurso na vida e na arte: 1) a explicitação dos presumidos na Arte; 2) na parte formal, o processo de produção formal de estranhamento através da escolha de um item lexical, como por exemplo a utilização da linguagem telegráfica na literatura; e 3) a internalização do ouvinte no autor estético.

 

Razão teórica e Razão prática

A razão teórica é um elemento da razão prática. O mundo teórico resulta da mais completa abstração do fato de minha existência e do sentido moral desse fato ("como se eu não existisse - se ele fosse único, eu não existiria"). Partindo do ato-procedimento, e não de sua transcrição teórica, chegamos ao seu conteúdo semântico viável, que se enquadra nesse ato, pois decorre no ser. O conteúdo semântico, abstraído do ato-procedimento, pode ser uno, mas não o ser singular em que vivemos e morremos, em que decorre nosso ato responsável, e assim esse conteúdo semântico é alheio à historicidade viva.

 

Realismo Séc.XVIII

O tempo histórico nas obras de Goethe, Rabelais e Dostoievski, mecas de Bakhtin, foi construído a partir dos romances do Renascimento. Em Rabelais destaca o riso e carnavalização como uma crítica ética do mundo medieval. Bakhtin encontra em Dostoievski o gênero polifônico, como consciência imiscuível de diferentes individualidades, sendo os personagens o lugar da reflexão da questão da ação. Em Goethe, os traços específicos são: a)  Visibilidade (concretude objetiva marxista)- o que não é concreto é não substancial e temos que olhar para a natureza; b) Multitemporalidade- em cada recorte, a diversidade tem conceito temporal: o contemporâneo é diacronia essencial como manifestação do passado e germe do futuro. Ressalta a visão humana do devir.

 

Relação do homem com o Sagrado

A leitura que fazemos hoje dos Cantos Védicos é estética e não religiosa. Mas, quando há manifestação religiosa, há manifestação ética, jurídica, que se revela por objetos-símbolos. A Religião é o lugar do ético, contém conjunto de símbolos dessas relações do homem com o sagrado que podem ser esteticizadas. No processo de esteticização, o ouvinte é internalizado pelo Autor na produção estética. Todo processo de esteticização é um processo em que o autor internaliza os valores; o ouvinte é constitutivo. A relação com o Sagrado é simbolizada por Mitos, Crucifixo, Taça (Graal), Gestos. As milhares de cruzes que se fazem a partir da Cruz de Cristo são objetos estéticos, que remetem à Cruz original, ou seja, a cruz numa igreja é a representação de uma cruz que não existe mais concretamente. Quando produzo uma cruz, incorporo o ouvinte religoso. O símbolo da Cruz não remete ao próprio objeto (um crucifixo) porque ainda tem validade como símbolo religioso. O mármore é o material da escultura, mas a escultura não é o mármore.

Relativismo

Nega a autonomia da verdade e tenta torná-la alguma coisa relativa e condicionada com respeito à sua veridicidade. Para Bakhtin, a autonomia da verdade, sua pureza e auto-determinação do ponto de vista do método, estão completamente preservadas. Como "pura" pode participar responsavelmente no Ser-evento. A validade da verdade é suficiente em si, absoluta e eterna. Cada um de nós assumindo a posição exotópica e sendo um centro de valores, chegamos ao relativismo absoluto.

 

Representação

A representação não nos permite construir um álibi. Por exemplo, a representação da responsabilidade política não exime o sujeito da responsabilidade do ato. Com relação aos valores universais, seu embasamento ontológico é uma possibilidade vazia frente à concretude do ato.

 

Responsabilidade

(Respondibilidade - Answearbility) - Para que não ocorra a cisão da eventicidade, é preciso que o ato (postupok) adquirida um plano unitário para refletir-se no vivido e no sentido: a responsabilidade. A responsabilidade (ou "respondibilidade") contém a alteridade, a resposta do outro, o ser que eu construo com o outro. Essa responsabilidade tem uma direção específica, relacionada com o mundo da cultura, dos enunciados e da significação, nunca superior à direção moral do ato. A palavra russa postupok contém o sentido de "ato responsável", traduzido em Espanhol como "ato ético".A responsabilidade envolve o desempenho de um diálogo existencial e toma o lugar do "dever" ou "obrigação". A Responsabilidade é a categoria fundamental no pensamento de Bakhtin (não-álibi do ser - responsabilidade que reside no seu lugar, "sui generis" na existência). Devo responder com a minha vida por aquilo que experimentei e compreendi na arte. Esse conceito está associado à dialogia, à alteridade.  à urbanidade (polis grega), ao contrário do rural, que remete à solidão, à individualidade.

 

Responsabilidade do Professor

Como professor, não posso encontrar álibi para minhas aulas. Sem risco não há educação possível. Na educação, a recepção ao recém-chegado deve ser "O que você me traz de novo?". No entanto, no processo atual da educação brasileira, o professor pertence à rede estadual ou federal de educação, e não a uma escola em particular. Assim, ele não cria relação de alteridade nem responsabilidade. Os professores ficam se removendo de uma escola para outra em busca do local ideal, de sua "Pasárgada".

 

Responsabilidade Especial e Moral

O Ato, refletindo-se em ambos os sentidos no plano uno (no seu próprio sentido - "ser" - adquire unidade de responsabilidade de duplo sentido: pelo seu conteúdo (responsabilidade especial) e pelo seu ser (responsabilidade moral). A responsabilidade especial é o elemento de ligação da responsabilidade moral única e una, a primeira é momento constituinte da segunda e devem entrar em comunhão. Assim, ultrapassamos a desagregação infeliz e a falta de interpenetração mútua da vida e da cultura.

 

Saber e Conhecer

Conhecer é identificar; saber é chegar a uma plena cognição. Conhecer e vir a saber envolvem cognição e racionalidade. Compreender e reconhecer, em Bakhtin, envolve o ato emcional-volitivo. Para nós, na modernidade, conhecer exige abstrair: construímos modelos. No entanto, está em crise o conceito do que é "universal", do que é "objetividade" e "predictibilidade". É a crise contemporânea dos paradigmas.

 

Ser Único

Similar ao conceito de Deus: Ser construído por todos nós, ser genérico. Cada um de nós é a relização dessa generalidade e o realiza, construindo. Há duas leituras: o Ser Divino (teológico), do qual temos uma parte que também é um todo (Dessertou em oposição ao Estruturalismo de Foucault), e o Ser porque nós existimos e somos a relização única e o constituímos, a somatória de todos nós (ver "Sociologia do Cotidiano", de Agnes Heller). Bakhtin, em defesa do concreto todo o tempo, constrói uma categoria do Ser, "somatório de todos nós". A ação que faz o ser torna o ser mais completo: o ser único, a cada ato único, é produtivo do Ser Único. Ajudo a dar completude a esse Ser, construo uma coisa proveitosa e nova. Nossas ações criativas criam o Ser de que eu participo. Assim, a questão da Criação é trazida para dentro da Ética e mostra como uma espécie de ontologia o centro de responsabilidade do Ser Único: o que é universal adquire obrigatoriedade no sujeito individual. Antes de Bakhtin, só colocávamos a questão da criação na Estética; a partir de suas teorias, passamos a integrá-la na Ética. (Ver "Deus de Bakhtin")

 

Sistemas éticos

Primeira crítica: toda ética atual é um conjunto de normas com base em sistemas de normas científicas, cuja fundação é externa à própria norma: o que é ético é acrescentado enquanto norma.Ex: Direito: crime contra a segurança do Estado - sou obrigado a não fazer nada contra a norma jurídica, e a transformo em norma ética, ou seja, acrescento à norma jurídica a norma ética, validada como ética. Assim, extraímos de fora a fundamentação ética. Já a questão do livre arbítrio é uma questão da prima filosofia. Segunda crítica: por ser obrigatoriedade científica e não um livre arbítrio, a norma ética deve ter validade universal ( a passagem da norma científica para a norma ética tem efeito e validade universais, aplicável a toda e qualquer consciência). DEVER é uma categoria da consciência e não pode ser categoria da teoria, pois desse modo deixa de ser validade interna da consciência. Por exemplo: o princípio da vida é um bem e é dever de todos conservar a sua vida, e a dos outros. Se a vontade me determina fazer determinada coisa, eu assumo que tenho que fazer essa coisa.Na Ética Formal a ação real é desterrada para o mundo teórico com uma exigência vazia de legalidade, ou seja, a vontade se submete à lei.

Sociedade e indivíduo

Sociedade é o "lugar de ser", a unidade constituída pela diversidade (multiplicidade de vozes multiplicada de tempos (presente, futuro e passado no Ato). O indivíduo é uma categoria da psicologia, a parte psicológica do sujeito, a parte menor que inclui a corporalidade. Para Bakhtin, o momento do ser é de transitividade e aberta eventicidade, não compreendido pela intuição estética, pelo pensamento teórico-discursivo e pelo psicologismo, pois esses domínios objetivos, separados do ato que os põe em comunhão com o ser, não são realidades com respeito ao seu sentido e significado.

 

Sugestões para estudos

1)       Modo polifônico de construçao da novela de TV obriga o narrador a alterar por completo o roteiro - dialogam personagem e autor. 2) Não existe mais o mundo sem a TV e sem relação com o sucesso. 3) Por que toda novela que remete ao rural tem mais sucesso, se a população brasileira é cada vez mais urbana, se a cultura de massa é urbana ? 4) As palavras se descolam das coisas, tomam caminhos diferentes; as palavras constroem sobre as coisas (co-paginação entre Bakhtin e Foucault). 5) Comparar a linguagem dos personagens que vivem à margem da sociedade em João Antônio e Rubem Fonseca (como em João Antônio a linguagem é plena de subentendidos e em Rubem Fonseca os palavrões remetem à imagem que a classe média tem dos marginais).

 

Sujeito como sede da contemplação estética.

A contemplação estética tem sede no sujeito, próxima da razão prática. Na teoria não podemos utilizar conjunto de elementos heteróclitos, e por isso a tentação é maior. Para Bakhtin, isso demonstra que a estética não esgota o Ato único em sua unicidade, eventicidade e devir.

Sujeito polifônico

Categoria essencial em Dostoievski, conforme os estudos de Bakhtin, e presente na atualidade nas novelas de televisão (obras polifônicas). Na Literatura, representa a estrutura, e não o ser único em sua eventicidade, unicidade. O sujeito polifonicamente constituído é o que dá o sentido à Arte, pois volta a si mesmo enriquecido. Porém, só posso usar minha formação polifônica se eu existir (evento em processo de devir). As vozes que me constituem hoje não me permitem ler Camões como um homem do século XVI o faria. O Ser (Deus), o lugar da polifonia que me constitui, e que constituo o que me constitui (cultura) denota a responsabilidade com o futuro. A cultura é o lugar do 'homo loquens", sendo a palavra uma ponte entre locutor e inter-locutor, e eles não são donos dessa palavra.

Tecnologia

O mundo da Tecnologia conhece sua própria lei imanente e fugiu da tarefa de compreender o propósito cultural de seu impetuoso desenvolvimento. Os instrumentos são perfeitos de acordo com sua lei interna,  mas a Técnica, desligada da unidade singular e entregue à lei imanente de seu desenvolvimento, pode assumir-se como força horrível e destrutiva, a serviço do mal e não do bem. O exemplo são os armamentos, cuja utilidade inicial racional seria a defesa e se tornaram força depauperante e destrutiva. O mundo da técnica nega-se a refletir o seu objetivo cultural. Abstrai-se do que dá vida ao ato, o que é arbitrário, o novo, o criativo em vias de consumar-se em ato. A orientação prática é inviável no mundo teórico, e assim é impossível agir com responsabilidade.

 

Totalidade

Categoria fundamental em Bakhtin: mesmo não tendo intenção tenho responsabilidade. Na unidade (o todo individido) não há nada que seja subjetivo ou psicológico. Em sua responsabilidade, o ato coloca diante de si sua própria verdade (verdade sintética), de dentro do próprio ato. Ex: o discurso em sua materialidade lingüística não pode ser dividido em partes (conceito de "recortes"). O todo é individido (fatualidade). Uma sentença pode ser segmentada, mas não posso atribuir ao segmento o sentido da sentença. Não há ato elocucional sem haver perlocução; a perlocução é parte necessária do efeito a ser alcançado pelo discurso. O tema é individual e real. Isso coloca Bakhtin mais na tradição que vem da retórica do que na tradição que vem da estrutura. (exposício= significação, disposício= tema).

 

Unicidade sui generis

A unicidade não pode ser pensada, só pode ser experimentada passionalmente. Na representação emocional-volitiva, a cognição é apenas um componente. "Ser" é definível nas categorias da comunhão real (do ato), categorias da experiência autêntica e passional da unicidade concreta do mundo.

Validade

"Válido" significa "estar em vigor", em uso, operativo em força ou efeito. Podemos considerar a validade das categorias e dos juízos sintéticos "a priori". É um conceito fundamental para a Filosofia, as Ciências e toda a cognição em geral. A validade teórica do conteúdo-sentido (imaterial), um juízo universalmente válido, é uma unidade teórica do domínio teórico aplicado. Seu lugar nessa unidade determina a sua validade. A avaliação de um pensamento inclui o momento constituído pela validade teórica de um pensamento como juízo, mas não se esgota nesse ato.O juízo teoricamente válido é impenetrável à minha auto-atividade individualmente responsável. Distinguimos a forma (categorias da síntese) e o conteúdo (o assunto, o dado experimental e sensual), que podem ser chamados de objeto e conteúdo, mas a validade permanece impenetrável ao ato individual, que é a ação realizada por aquele que pensa.

 

Valor da obra de arte

A obra de arte é um objeto real que possui valor (realidade-objeto), mas é um valor não idêntico à sua realidade. A tela e a tinta não pertencem ao valor que ela possui. Os bens são realidades-objetos vinculadas com valores. No entanto, os valores são separados do valor psíquico de avaliação. Valores estão associados à realidade, mas não são o mesmo que avaliações reais ou bens reais. A obra estética tem uma forma de acabamento: o autor introduz uma categoria de acabamento.

 

Veridicidade

É o fato de ser verdadeiro em si.

Vida, Idéia, Procedimento

A Vida (singular) em sua totalidade é uma atuação complexa. A Idéia é uma atuação individual responsável que integra a vida como atuação ininterrupta. O Procedimento é a idéia mais o seu conteúdo, que a torna íntegra. Na historicidade concreta de sua realização, os elementos semântico e histórico-individual (factual) são unos e indivisíveis.

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

 

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

___________ Para uma filosofa do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.

 

GERALDI, João Wanderley. Alteridades: Espaços e Tempos de Instabilidades. Artigo escrito para os alunos do curso "Tópicos de Lingüística V", IEL, Unicamp, novembro de 2003.

 

LARROSA, Jorge/ FENOY, Sebastián. Maria Zambrano: L'Art de les Mediacions (Textos pedagògics). Barcelona, Publicacións de La Universitat de Barcelona, 2002.

 

SOUZA, Geraldo Tadeu. A Construção da Metalingüística (Fragmentos de uma Ciência da Linguagem na obra de Bakhtin e seu Círculo). Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo, 2002.

 

VOLOSHINOV, V.N./M.M.BAKHTIN. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução inédita de Cristóvão Tezza do artigo "Discourse in Life and Discourse in Art", apêndice in Voloshinov, V.N. Freudianism: a marxist critique. New York: Academic Press, 1976;

 

 

 

WILSON DAVID

01/12/2003