JORNALISTAS E ESCRITORES:
A CORDIALIDADE DA DIFERENÇA
 

  MARISA LAJOLO
é Professora Dra.do Dep. de Teoria 
Literária do 
IEL - Unicamp

1- Coelho Neto. 
A Conquista. 
Porto: Lello  e irmãos. 
5ª edição,  p.262-263
- Eu? não trabalho em jornais. Considero a imprensa um indústria intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias originais e retalha-as para o varejo do dia-a-dia. (...) O jornalismo está para a Arte como um desses anjos bojudos de cemitérios estão para o Laocoonte. (...) (...) O redator não quer saber se temos ideais ou não; quer espremer. Quanto mais suco melhor. O prelo é a moenda e lá se vai o cérebro, aos bocados, para repasto do burguês imbecil e, no dia em que o grande industrial compreende que nada mais pode extrair do desgraçado que lhe caiu nas mãos sonhando com a glória literária, despede-o e lá vai o infeliz bagaço acabar esquecidamente, minado pela tuberculose. 1 
2 - Conferir  Machado de Assis, 
Obra Completa Rio de Janeiro:  Aguillar. 3º vol.
As relações entre Jornalismo e Literatura são antigas e nem sempre harmoniosas. E talvez não pudesse ser de outra maneira , já que como formas de comunicação coletiva as duas acompanharam a sociedade humana desde seus primórdios, com grande impacto social, tendo ambas sido profundamente marcadas pelo surgimento da Imprensa, no século XV . Jornalismo e literatura foram uma coisa antes de Gutemberg e outra depois dele, que afetou profundamente o modo pelo qual notícias & criações estéticas verbais circulavam . Para encurtar uma história que é longa , pode-se dizer que aos mensageiros e arautos sucederam-se os jornalistas, assim como aos jograis e cantadores sucederam-se os escritores . Enquanto tecnologia de informação, a imprensa deu materialidade aos processos e produtos de jornalistas e de escritores, formatando nesta materialidade, a rivalidade que (até hoje ?) marca as relações entre estes profissionais da escrita. A questão já explode em janeiro de 1858, quando o então jovem escritor Machado de Assis (1839-1908) , se perguntava, ao longo de dois artigos no Correio Mercantil:  O jornal matará o livro ? O livro absorverá o jornal ? O jornal devorará o livro ? (944-946) 2
3- Conferir Machado de Assis, 
Obra Completa.
Rio de Janeiro:  Aguillar. 3º vol.
A questões tão anti-machadianamente apocalípticas, ele próprio respondia: O jornal, abalando o Globo , fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de Letras; porque ele diz ao talento: "Trabalha ! vive pela idéia e cumpre a lei da criação! " Seria melhor a existência parasita do tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto ?  

Não ! graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. Tudo se liberta. Só o talento ficaria servo ? (943-948) 3 
   

4- Conferir 
João do Rio, 
O Momento  Literário.
RJ:
Garneier, s/d.
A questão jornal versus livro aparentemente apaixonava intelectuais brasileiros. E os enroscava muitas vezes em polêmicas. 

Para entender a paixão e o enrosco, talvez se precise registrar o caráter tardio com que a imprensa chegou ao Brasil: só a partir da vinda de D.João VI em 1808, foram os prelos admitidos na colônia portuguesa. Assim, a obssessão pelo tema imprensa, no Brasil, pode ter uma pontinha psicanalítica. 

E como boa questão psicanalítica, volta e meia ressurge. 

A questão cruza o século e retorna às páginas do jornal no início do século XX, quando a pergunta o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária (p. XVIII) ? faz parte do questionário que João do Rio [ João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1880-1921)] submete a dezenas de escritores, e das quais acabou resultando o livro O momento literário . 4

  Dentre os que responderam, as respostas variam em tom e melodia, o que mostra como a questão polarizava opiniões. Para o poeta Olavo Bilac (1865-1918), o jornalismo 

(...) é para todo escritor brasileiro um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal - porque o livro ainda não é coisa que se compre no Brasil, como uma necessidade (p.10) 

  De entusiasmo semelhante compartilha o historiador e folclorista Sílvio Romero (1851-1914) : 
 

(...) o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o criador da literatura brasileira há cerca de um século a esta parte (p.49) .  
 

As vozes divergentes inauguram-se com o copioso Coelho Neto (1864-1934) , para quem o jornalismo 
 

Como nunca teve audácia para educar, aceita um trabalho, não pelo gênio do autor, mas sempre de acordo com o agrado do público. Às vezes é perverso. A decadência do teatro é devida exclusivamente ao jornal e aos próprios escritores dramáticos jornalistas (...) Veio o anúncio, o balcão dominou, começaram os incentivos para o trololó. Hoje o público está acostumado e não quer outra coisa. Quanto à literatura que publicamos nos jornais, lembra os livros impressos no tempo do Santo Ofício: não têm o visto da inquisição, mas têm o visto do redator chefe (p.61)  
 

Outro prosador, Fábio Luz ( 1864-1938), é ainda mais enfático na condenação da imprensa. Para este escritor anarquista, 

 

(...) o jornalismo estraga e esteriliza os escritores e artistas que fazem dele profissão. Para a literatura é sempre prejudicial, com suas apoteoses aos amigos e conluiados, enchendo-os de vento e vaidade, e o silêncio matador para os desafetos e indiferentes. Dos conciliábulos das redações e dos chopps intimos, saem sempre as coteries e as consagracões das mediocridades, em torno das quais chacoalham os guisos da fama (!), desviada a atenção pública do verdadeiro mérito, iludida pelas fanfarras, entontecida pelo fumo do incenso queimado em turíbulos de folha de flandres (p. 207/208)  
 

Em Ironia e Piedade , obra de 1916, um Olavo Bilac já mais maduro , talvez por ter sido um usuário mais hábil do sistema, sublinha, com entusiasmo, que coube à sua geração desbrav(ar) o terreno, pois foi ela que fez da imprensa literária uma profissão remunerada: 
 

Há quarenta anos, não havia propriamente homens de letras no Brasil; havia estadistas, parlamentares, professores, diplomatas, homens de sociedade, ou homens ricos, que, de quando em quando, invadiam por momentos o bairro literário, - alguns deles com um certo vexame, encapotando-se, disfarçando-se, escondendo-se, cosendo-se às paredes, com medo da murmuração da gente séria, com se entrassem em lugares proibidos, centros de frívolas ou condenáveis diversões. E esse vexame não era descabido, porque raramente a gente séria lhes perdoava a fraqueza moral revelada por essas rápidas e furtivas incursões nos domínios das letras. 
 

Que fizemos nós? Fizemos isto: transformamos o que era até então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio; estabelecemos um preço para o nosso trabalho, porque fizemos desse trabalho uma necessidade primodial da vida moral e da civilização da nossa terra; forçamos as portas dos jonais e vencemos a inépcia e o medo dos editores (p.75-78) Tanto imprensa quanto literatura constituem diferentes formações discursivas , provenientes de lugares sociais distintos; mas integram ambas o mesmo sistema da escrita. Não se confundem, posto sejam intercomunicantes. E o fato de a imprensa, durante um certo tempo e em certos casos, financiar a literatura talvez constitua a manifestação mais visível desta intercomunicabilidade. E talvez 
constitua , igualmente, razão eventual para os desentendimentos que entre elas se registra . 

5- Em  Portugal:  Gazeta de  Portugal, 
Distrito de Évora, 
Diário de Notícias
no Brasil,  Gazeta de Notícias.
Desentendimentos, por exemplo, que se encenam na pena de Eça de Queirós ( 1845- 1900) . Jornalista ele mesmo, colaborador assíduo da imprensa , inclusive da brasileira 5, seus melhores romances são habitados por jornalistas, a partir do pobre João Eduardo ( O crime do Pe. Amaro, 1876) cujas desditas com a Amelinha começam por uma diatribe anti-clerical publicada na folha da pacata e carola Leiria. 

Mas é n'O Primo Basílio ( 1878) que nos deteremos para discutir as representações que da imprensa e de seus profissionais traça Eça de Queirós. 

6- Todas as  citações provêm  da edição citada na bibliografia.  Ao final da  transcrição, 
indicam-se as 
páginas de onde foram extraídas.
Já no segundo parágrafo do livro, às onze horas da manhã de um ensolarado domingo, o jornal ingressa no romance , pelas mãos (ainda castas) de Luísa. Enquanto Jorge lê a divulgação científica de Luis Figuier , Luísa lê O diário de Notícias

É nele que ela fica sabendo que 
 

Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o Sr. Basílio de Brito, bem conhecido de nossa sociedade. S. Exa. que, como é sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo do ano passado. A sua volta à capital é um verdadeiro júbilo para os amigos de S.Exa que são numerosos ( p. 18). 6 

7- Conferir 
Miné, Elza: 
Eça de Queirós Jornalista.  Coleção  Horizonte
(dir. Joel  Serrão) Livros Horizonte, 1996.
É, pois, pela imprensa que, ao anunciar-se a chegada de Basílio, entra em cena o agente do desequilíbrio que, de forma progressiva , desestabiliza o casamento de Luísa e Jorge , desestabilização que pode ser lida ( como aliás, vem sendo lida, pela melhor crítica queirosiana) como prenúncio e signo da decadência do mundo burguês lisboeta, condensada, na obra, na desenxabida sociedade que se reúne para os serões do casal. 

Como se vê, o mal vem do Brasil e chega pela imprensa. 

Mas nem tudo no jornal cheira a pecado. 

Em O primo Basílio, a imprensa também é apresentada, nas palavras do Conselheiro, como sustentáculo dos valores da vida burguesa, penhor da moralidade e farol dos bons costumes: 
 

- (...) os suicídios em Lisboa diminuíam consideravelmente; atribuía isso à maneira severa e muito louvável como a imprensa os condenava...  

- Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força ! " (p.174-175).  
 

Também nos ambientes dominados por Jorge a imprensa parece funcionar como signo de sua vida de engenheiro sem mácula a serviço do estado. Antes de partir para o Alentejo, quando Jorge chama Sebastião a seu escritório para recomendar-lhe Luísa, o leitor é informado que lá 

(...) uma coleção empilhada de Diários do Governo branquejava a um canto (42)  
 

Trata-se do mesmo e presumidamente sisudo Diário do Governo que mais tarde anuncia a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de cavaleiro da ordem de S. Tiago (p.238) . Contrapõem-se, assim, as notícias veiculadas pelos dois periódicos: ao contrário das frívolas folhas da imprensa comercial, de onde provêm escândalos e perdições de toda a sorte, não advém risco algum da circunspecta publicação oficial. 

Pelo contrário, ela referenda o zelo conjugal de Jorge e o perfil conservador do Conselheiro. 

Na mesma cena que antecede a partida de Jorge, ainda que Sebastião, ao deixar a casa , leve uma caixa de charutos embrulhada num Diário de Notícias (p.45) nem o rebaixamento do jornal transformado em papel de embrulho nem sua remoção física, parecem exorcizar os malefícios dessa imprensa. 

Em outra passagem do romance, novamente a imagem de um jornal liga-se , metonimicamente, a um clima de amores ilícitos: o pai da infeliz Juliana, um misterioso D.Augusto, ao voltar à noite para um clandestino encontro com a mãe da futura criada de Luísa, trazia sempre um jornal (p.61). 

O jornal, presença constante no grupo social de Luísa e de Basílio e que também percorre o mundo de Juliana, parece compor ainda a paisagem de uma burguesia mais alta, de recorte aristocrático. Nas rodas do depravado Visconde Reinaldo - confidente de amores e companheiro de viagem de Basílio- o que circula não é mais a imprensa portuguesa, mas o cosmopolita Times

Na menção ao jornal inglês, Eça insinua falta de patriotismo do Visconde, para quem Lisboa tem temperatura reles e Portugal um cheiro ignóbil (114) . Na vizinhança entre o jornal londrino e a negatividade da personagem, pode-se talvez ler a impaciência de Eça em relação ao The Times implicância desenvolvida ao longo de sua função de correspondente na Inglaterra, primeiro para A Actualidade ( jornal do Porto) e depois para a Gazeta de Notícias ( jornal do Rio de Janeiro). 7 
 

8- Relativamente às  posições de  Lima Barreto  sobre o assunto,  consultar 
A formação da leitura no Brasil, de Lajolo e Zilberman.
Outro domínio da vida portuguesa de que O primo Basílio aproxima a imprensa, é a esfera cultural, onde o leitor do livro penetra pelas mãos de Ernestinho, o esfuziante autor do drama em cinco atos Honra e Paixão, premonitório do adultério de Luísa. 

O autor da peça freqüenta jornalistas ( vai à casa do Bastos, folhetinista da "Verdade"¨ (p.162) e, talvez de troco ( como dizia Lima Barreto para a situação carioca ... ) 8 a imprensa modula e orquestra recepção elogiosa da peça: 

9- No romance  queirosiano 
A Capital, também um jornalista  lisboeta chamado  Saavedra é o  articulador do lançamento do livro do
protagonista.

O Diário de Notícias dizia mesmo que "o autor chamado ao proscênio no meio do mais vivo entusiasmo recebeu uma formosa coroa de louros " [p.307]  
 

mencionando o narrador ainda que 
 

O Saavedra do "Século " tinha-lhe dito: o amigo é o nosso Shakespeare ! O Bastos da verdade tinha afirmado: és o nosso Scribe ! (p.307-308) . 9 

  Mas o elemento do romance em que melhor parece configurar-se a imagem queirosiana do jornalista na figura de Savedra , ocorre na cena do jantar de rapazes ( p.238) com que o Conselheiro Acácio celebra o recebimento da ordem de S.Tiago. No episódio, a apresentação física de Saavedra parece acentuar a negatividade da representação da imprensa: 
 

Daí a pouco entrou a figura conhecida do Saavedra, redator do Século. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas de ouro acentuavam o seu tom oficial; trazia ainda no queixo o pó-de-arroz, que lhe pusera momentos antes o barbeiro; e a mão , que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada numa luva nova, cor de gema de ovo (p.239)  
 

Uma tão desfavorável apresentação se articula com outros atributos que, ao longo da cena, vão esculpindo uma figura quase repulsiva . Saavedra é anticlerical ( ... não o sabia carola Conselheiro [p.242] ) , e no entanto concorda com o Conselheiro que a Religião é um bridão (p.242). É libertino[(...) o Saavedra interrompeu ruidosamente, com a face acesa numa jovialidade libertina: - Eu, num quarto de dormir, as únicas pinturas que admito são uma bela ninfa nua, ou uma bacante desenfreada (243)] e seu republicanismo é só de fachada - Eu no fundo sou republicano (...) sou-o em princípio. Porque o princípio é belo, o princípio é o ideal ! Mas e a prática ? Sim, a prática ? (...) A prática é impossível. (p. 245) 

Muito embora um leitor bem informado de O primo Basílio perceba que certas posições assumidas por Saavedra sejam as politicamente corretas para a época, e ainda que algumas delas coincidam com posições a que aderiu o próprio Eça de Queirós ( como o republicanismo e o anti-clericalismo), todos estes créditos se desmancham face à adjetivação que sublinha aspectos grosseiros e às vezes repulsivos do jornalista: 

(...) face balofa (...) tinha desabotoado a fivela do colete; espalhava-se-lhe no rosto gordo uma cor de enfartação, e sorria vagamente, inchado (p.245)  
 

O retrato desfavorável culmina pela condenação moral de Saavedra, que anuncia sem pudor, em admirável trecho de estilo indireto livre, fazer uso de sua posição na imprensa para auferir benefícios: 

10- Agradeço à Professora Dra.  Yara Frateschi a  sugestão de  trabalhar com  este livro.

(...) Ele tinha-os apoiado, não é verdade ? E com lealdade. Porque era leal ! Sempre o fora em política! Pois bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor de Aljustrel, tendo-lho prometido! E nem lhe tinham dado uma satisfação. Assim não era possível fazer política! Era uma coleção de idiotas ! (p. 244)

Saavedra e Julião discutiam a imprensa. O redator do Século gabava a profissão de jornalista - quando a gente, já sabe, tem alguma coisa de seu; mais tarde ou mais cedo apanha-se um nicho, não é verdade ? Depois as entradas nos teatros, a influência nas cantoras. Sempre se é um bocado temido (p.247) .  
 

A questão ressurge, em outro patamar, no belo romance de 1986 de José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis.10 O primeiro parentesco com jornalismo que esta obra sugere é o fluxo contínuo de sua linguagem, de cuja linearidade ininterrupta se constrói - paradoxalmente- o mosaico no qual se vão sucedendo diferentes vozes, num continuum gráfico que as dissolve a todas. 

  Como ocorre com o leitor do jornal, este estilo de Saramago faz seu leitor mover-se por um bombardeio de informações, onde a contiguidade de diferentes assuntos acaba criando imprevistas relações semânticas entre eles. Exatamente como num jornal, cuja primeira página ao noticiar lado a lado a epidemia de cólera numa nação africana, o campeonato sul americano de futebol e o suicídio em massa num país da Europa torna, graças à proximidade física destas diferentes matérias, cada uma delas um pouco a outra. 

A voz do narrador de O ano da morte de Ricardo Reis é monocórdica e nela a surdina do relato parece afiançar a veracidade da história narrada. 

Ao contrário dos livros que romanceiam fatos da vida real, aqui Saramago dá concretude de narrativa ao discreto e contido heterônimo pessoano. Ou seja: ao contrário de um manto diáfano da fantasia por sobre a nudez crua da verdade , como recomendava Eça de Queirós, aqui se tem fantasia sobre fantasia

Mas, paradoxalmente, nesta dupla ficção, cujo timbre imaginário tem tudo para prevalecer, ele não prevalece. Ao contrário, se enfraquece, mito embora o protagonista Ricardo Reis ( por assim dizer, a criatura original de Pessoa à qual a de Saramago se cola) seja figura de papel e tinta, de historicidade apenas literária, muito menos solida, portanto, do que o Camões de que Saramago se ocupara seis anos antes, em Que farei com este livro ? (1980) . 

Então, nesse requintadíssimo Saramago de agora a marca do imaginário se esgarça , dissolvida pelas inúmeras passagens em que o Portugal real - isto é, digamos, o país europeu cuja vida política compõe o tempo do leitor de Saramago- ingressa nas páginas do livro, trazido pelas páginas do jornal que Ricardo Reis lê com e para Fernando Pessoa: 

... Confortavelmente reclinado no encosto do banco, de perna traçada, sentindo o leve ardor do sol nas pálpebras semicerradas, Ricardo Reis recebe no Alto de Santa Catarina as notícias do vasto mundo, acumula conhecimento e ciência de que Mussolini declarou, Não pode tardar o aniquilamento total das forças militares etíopes, que foram enviadas armas soviéticas para os refugiados portugueses em Espanha, além doutros fundos e material destinados a implantar a União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas Independentes quem segundo foi proclamado por Lumbrales, Portugal é a obra de Deus através de muitas gerações de santos e de heróis, que no cortejo da jornada corporativa do Norte vão incorporar-se quatro mil e quinhentos trabalhadores, a saber, dois mil trabalhadores de armazém, mil seiscentos e cinquenta tanoeiros, duzentos engarrafadeiros, quatrocentos mineiros de de São Pedro da Cova, quatrocentos conserveiros de Matosinhos e quinhentos associados dos sindicatos de Lisboa, e que o aviso de primeira classe Afonso de Albuquerque largará com destino a Leixões , a fim de tomar parte na festa operária que ali se realizará, também ficou a saber que os relógios serão adiantados uma hora, que há greve geral em Madrid, que sai hoje o jornal O Crime , que tornou a aparecer aquele famoso monstro Loch Ness, que os membros do goveno que foram ao Porto assistiram à distribuição de um bodo (sic) a tres mil e duzentos pobres, que morreu Ottorino Respighi, autor das Fontes de Roma, felizmente o mundo pode satisfazer todos os gostos, isto é o que pensa Ricardo Reis, não aprecia de igual modo o que lê, tem, como toda a gente, as suas preferênmcias, mas não pode escolher as notícias, sujeita-se ao que lhe dão (p. 264/265)  
 

Assim, pois, neste O ano da morte de Ricardo Reis , cuja leitura faz o leitor arfar sem fôlego, o jornal que o protagonista lê é signo ambivalente. É emblema do mundo que não se pode recusar e, simultaneamente, matriz da linguagem na qual se constitui este mundo, remetendo-se, pois, a questão jornalismo/literatura para um patamar mais complexo do que aquele em que se representavam as relações entre jonalismo e literatura no romance oitocentista. 

11- Conferir o  texto O romance político de Antonio Callado, de Lígia  Chiappini,  apresentado no  Congresso da  BRASA, em  Cambridge, setembro de 1996.
Também o último romance do escritor brasileiro Antonio Callado ( 1917-1997) , Memórias de Aldenham House , recoloca a questão, modulando-a ainda mais, ao incorporar a mídia como cenário no qual a ação transcorre . 

Trata-se de um romance no qual exilados políticos de diferentes ditaduras da América Latina encontram na sede do serviço latino americano da BBC inglesa refúgio para as perseguições que sofriam em seus países. Torna-se assim, aqui, a mídia, espaço do Bem, marcado pela positividade em que se refugiam os bons perseguidos pelo Mal . 

E a redenção seria sem mácula não se tornasse Aldenham House cenário de uma morte suspeita de homicídio 11 e que, no desenlace do romance, vai ser pretexo para prisão, tortura e morte do líder político paraguaio Facundo Rodriguez . 

12- Relativamente à relação contemporânea entre literatura e outros mídia, conferir os instigantes ensaios  de Lúcia Santaella em Cultura dos Mídia. São Paulo:  Experimento. 1996.
Tornam-se, assim , prismáticas, as relações que entre jornalismo e literatura se estabelecem nesta belíssima história de Callado - também ele, na vida real, dublê de escritor e jornalista. Reforçando a complexidade com que este último livro de Calladoi constrói uma pós modernidade periférica atravessada por vozes e sotaques de diferentes mídia, também perambulam pelas páginas do romance diferents modalidades de literatura - de Joyce ao romance policial- que, lado a lado com diferentes mídia, tornam menos monolítico cada um dos polos que, nos pacíficos tempos de Eça de Queirós balisava o ringue em que se enfrentavam jornalistas de um lado e romancistas de outro. 

Na história de Callado, a misteriosa morte de Mr. Baker acrescenta um toque de ironia -transcrita como metalinguagem- a um romance político. Na opinião reiterada da personagem Facundo Rodriguez , à culpa política da Inglaterra pelo imperialismo na América Latina soma-se a culpa estética da mesma velha Inglaterra pela invenção do romance policial , introduzindo-se aqui, à dessemelhança das obras anteriormente comentadas, o polo da cultura de massa , o que parece funcionar no romance como um tercius que dialetiza a polarizada relação jornalismo/  
literatura12

  Em Memórias de Aldeham House , a infiltração da literatura em e pelas outras mídia se dá por diversas vias, que sugerem, na sua pluralidade e simultaneidade , a complexidade crescente de um mundo no qual literatura & jornalismo se olham mutuamente e ( enfim juntos ! ?) olham para outros mídia com olhos muito mais atônitos do que aqueles com que mediam forças e desferiam farpas recíprocas, no romance do já remoto século XIX, onde vilões e heróis habitavam territórios distintos, separados por linhas nítidas e rigorosas. 

... talvez porque se reescrevam agora aquelas apocalípticas questões machadianas: os novos mídia vão matar o jornal ? A novela absorverá o romance ? A informática absorverá a escrita ? ... 
 

Ainda que a alta literatura chegue a Aldenham House pelas constantes citações de Joyce, cujo Finnegans Wake a jornalista chilena ( de ascendência irlandesa ) Elvira O 'Callaghan Balmaceda traduz para o espanhol, ela não está sozinha em cena: divide espaço com mídias de menor estirpe e maior audiência. 

Joyce convive aqui, por exemplo, com alusões entusiásticas a novelas radiofônicas. Irradiada pela BBC , na esteira do sucesso de uma adaptação de D.Quixote pelo venezuelano Bernardo Villa, planeja-se uma novela que irá celebrar Bolívar e o herói paraguaio Francia, politizando-se, com isso, esse gênero ancestral que - com larga audiência no Brasil dos anos cinquenta- foi precurssor das hoje tão polêmicas novelas globais . 

Tradução, adaptação e migração de mídia constituem formas de intertextualidade, marcas emblemáticas da pós modenidade, que dão o que falar e criam problemas para categorias mais ortodoxas dos estudos literários, como originalidade ou o estatuto único de uma obra prima, e que pede aproximação maior entr os estudos da literatura, os da semiótica e os estudos culturais, já que contemporânamente é cada vez mais freqüente a literatura entranhada de outros mídia e vice-versa. 

O que nos põe a nós, navegantes de todos eles, na corda bamba: 

Onde a literatura ? Onde os outros mídia ? 

Perguntas cujas respostas mais instigante serão, talvez, as que levarem em conta os riscos e limitações das indagações binárias sobre assuntos de cultura. E mais: serão mais sugestivas as discussões que, aprendendo a lição que ensina o pecurso diacrônico das quedas-de-braço entre literatua e jornalismo, dialetizem o problema. Ou seja: sem elidirem ou minimizarem as diferenças entre diferentes mídia, busquem no seu ( deles) contexto de produção e circulação as forças que determinam a relação entre eles todos, o que varia, do antagonismo cego à cordialidade da diferença e mesmo à solidariedade apaziguada . 

 

 

BIBLIOGRAFIA   

Bilac, Olavo. Ironia e Piedade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916. 

Callado, Antonio. Memórias de Aldeham House . Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1989 

Coelho Neto. A conquista. Porto: Lello & Irmãos. . 

Duarte, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: EDART, 

João do Rio. Momento literário. Rio de Janeiro: Garnier . s/d ( 1903) 

Lajolo, Marisa e Zilberman, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo : Editora Ática. 1996 

Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1968. 

Machado de Assis. Obra completa . Rio de Janeiro: Aguillar. 3. volumes. 

Miné, Elza. Eça de Queirós jornalista. Coleção Horizonte (dir. Joel Serrão) Livros Horizonte,1986 

Monteiro Lobato. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 2 volumes, 1972 . 

Queirós, Eça de . O primo Basílio . São Paulo: Editora Ática. 1993