Rousseau e o Romantismo

Juliana Santini
j.santini@bol.com.br

Nesses pensamentos, me abismo,
sucumbo, sob a força dessas magníficas visões.
Goethe.
Introdução

    Rousseau, o autor de linhas marcadas por traçarem parte do caminho da filosofia, da pedagogia e da arte modernas, passeou entre os diálogos de estudiosos e interessados nas áreas tocadas por seu pensamento em aulas expostas no curso de extensão universitária que teve como título Rousseau: filosofia, literatura e educação, promovido pelo Departamento de Letras Modernas da UNESP de Araraquara e pelo grupo interdisciplinar de pesquisa Jean-Jacques Rousseau durante os meses de setembro, outubro e novembro do ano 2000. O pequeno relato que aqui se esboça reúne, embora modestamente, alguns dos pontos apresentados na aula de 31 de outubro, ministrada pela Profa. Dra. Karin Volobuef.

    Sabe-se que alguns meses de estudo não são suficientes para esgotar um assunto que engloba vários segmentos dos estudos contemporâneos e, certamente, essa não foi a pretensão de seus participantes. No entanto, algumas expectativas fizeram-se superadas: o interesse despertado inicia, agora, uma nova incursão pelos pensamentos de Rousseau, incursão impulsionada e nutrida pela eterna sede de conhecimento que nos envolve e que teve, nessa oportunidade de conhecer parte dos estudos realizados por especialistas no assunto, material para iluminar os túneis que conduzirão alguns de nós, ainda ingênuos entusiastas do pensamento e da arte.
 

Rousseau e o Romantismo

    Não é ignorado o importante papel desempenhado pelas reflexões de Rousseau na composição do ideário que norteia o desenvolvimento da estética romântica. É imprescindível esclarecer que, por Romantismo, entende-se o movimento artístico que surge no final do século XVIII e tem seu apogeu no início do século XIX, de forma que o período que antecede e, de certa forma, prepara o desenvolvimento da incursão artística romântica na história será aqui, com propósitos meramente didáticos, tomado por Pré-Romantismo, de forma que essa designação engloba certas tendências difusas que ainda não podem ser sistematizadas ou unidas como um movimento estético organizado como o foi, inversamente, o Sturm und Drang alemão.

    Dentre os temas que avultam no pensamento de Rousseau destaca-se o questionamento sobre a essência humana. Para o filósofo genebrino, o homem nasce bom e virtuoso, sendo corrompido no momento em que se insere no sistema social. Sob esse aspecto, a tentativa de retorno à condição humana primitiva, feita por meio da revalorização do amor e da amizade, representa também a re-tomada da natureza, vista como oposto da infelicidade e da injustiça, sentimentos inerentes à engrenagem que impulsiona a máquina social.

    Essa oposição entre a natureza em seu estado puro, berço da pureza humana em que o homem seria capaz de encontrar a liberdade pessoal e social, e a sociedade, vista como o centro motor da deturpação da virtude, será projetada para o nível estético, culminando com a polarização temática campo versus cidade.

    Nesse ponto, é importante destacar o papel definitivo do pensamento rousseuaniano na evolução do tratamento dado à temática que envolve a representação da natureza no campo artístico. Valorizando o espaço da essência individual, Rousseau destitui da paisagem o que ela tem de meramente físico e a ela direciona um olhar subjetivo, que transfigura o mundo exterior no reflexo da subjetividade e da individualidade do próprio eu que a contempla:

“ninguém antes de Rousseau realizara a fusão entre o homem e a natureza a ponto de fazer dela o conteúdo da própria consciência. Pois o que impressionou os contemporâneos e preparou a literatura romântica foram os laços que ligam a paisagem e o estado de alma das personagens.” (Moretto, 1994, p.16)
    Projetado para as artes plásticas, principalmente para a pintura, esse novo olhar culmina com uma ruptura significativa na estrutura que compõe a obra; a natureza deixa de  ser simplesmente o cenário ou a “moldura” e passa a assumir o papel central do quadro: a arte romântica é a arte da natureza e procura representá-la em toda a sua força e dimensão. Dessa forma, se o desenho nítido e com contornos bem definidos da pintura anterior ao Romantismo constitui uma visão otimista e diurna, que apresenta uma natureza aberta e pronta para ser dominada, a arte romântica trará para a tela traços difusos e sem contornos definidos, visando a provocar um impacto emocional por meio de uma impressão geral em que a falta de nitidez une-se à valorização da essência instintiva da natureza.

    Embora Rousseau seja visto como “inimigo dos romances”, aquele que é considerado o maior romance do século XVIII é de sua autoria. Publicado em 1761, Julia ou A nova Heloísa tem significativa importância não somente no conjunto da obra de seu autor mas também no desenvolvimento da ficção narrativa do século XVIII. Contemporânea de um contexto que viu surgir Pamela e Clarisse Harlowe, de Richardson, a obra também tem sua estrutura calcada no gênero epistolar, de maneira que a ação do romance desenvolve-se, basicamente, em torno da troca de cartas entre cinco correspondentes, embora haja mais três correspondentes de importância secundária, que escrevem apenas uma carta, e um outro, que escreve duas.

    Se A nova Heloísa marcou o início da obra de Rousseau com seu sucesso vultuoso (o livro foi editado cem vezes entre 1761 e 1800), também é importante notar que o romance parece conter grande parte dos questionamentos que permearam todo o pensamento rousseauniano. Fundindo o amor espiritual e o amor carnal, as páginas do livro carregam também um movimento de ternura que até então não aparecera nas produções literárias.

A nova Heloísa é, portanto, o romance do pensamento de Rousseau que suas outras obras iriam teorizar, mas é também  romance de sua sensibilidade e de seu lirismo. Livro denso que engaja totalmente o pensador e o artista, ele é o ponto de partida de uma obra que iria dar uma nova orientação à literatura, à filosofia, à educação e às ciências sociais nos últimos dois séculos”. (Moretto, 1994, p.19)
    De fato, é inegável o papel precursor desempenhado pelo romance de Rousseau em relação ao movimento literário romântico, principalmente quando se trata do Sturm und Drang, na Alemanha. Mais estreita ainda é sua relação, tanto do ponto de vista formal quanto temático, com Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Também do gênero epistolar, o romance de Goethe traz à tona o mesmo sentimentalismo e também a sensibilidade aguda que envolvem a obra de Rousseau. As cartas que compõem o livro pertencem somente ao jovem Werther, ou seja, não há um interlocutor com quem se corresponda, o que revela ao leitor um movimento de escrita semelhante à construção de um diário, que tem na solidão do protagonista um cenário em que a luz do devaneio prevalece sobre a realidade penumbrosa.

    Além de sulcar um rastro inegavelmente definitivo na literatura produzida no final do século XVIII e no início do século XIX na Alemanha, França, Inglaterra e outros países europeus, influenciando autores como o já citado Goethe, Schiller, Mme. de Staël, Chateubriand, Saint-Pierre, Samuel Taylor Coleridge, William Wordsworth, além de outros, o pensamento rousseauniano também tracejou suas cores na produção romântica brasileira.

    A crítica à civilização e o anseio pela Natureza - grafada com letra maiúscula para sublinhar o que há de essencial em sua expressão - culminam com a literatura de cunho indianista. Se um velho Timbira pôde guardar em sua memória os feitos heróicos de um jovem e bravo Tupi, como cantou Gonçalves Dias, e se “o coração é um solo”, como quis José de Alencar, talvez o dono da mais marcada representação do indianismo na literatura brasileira, provavelmente não o seria sem a sistematização do pensamento de Rousseau.

    O bom selvagem, corajoso e de bom coração, fez ecoar seu laço de comunhão com a Natureza por toda uma geração de artistas. Também os sonhos, a loucura e o devaneio impregnaram o mundo com suas manifestações em meio às trevas inquebrantáveis da noite, eterna ruína. Noite que escondia a solidão de um amante ingênuo, contemplador da beleza da natureza. O olhar do homem romântico hoje parece piegas e chega a ser fruto de riso na interpretação de leitores menos atentos que não levam em consideração o contexto sócio-cultural do final do século XVIII e do início do século XX, campo fértil para a recepção do ideário que o semeou.

    Hoje, Rousseau e Romantismo são nomes que, distraidamente, parecem confundir-se. Desde que um caminhante solitário espalhou seus devaneios e uma (nova) Heloísa sofreu assim como o fez um jovem alemão apaixonado, o mundo da representação artística deixou de ser o mesmo. Seria Rousseau somente o filósofo que soube imprimir em suas páginas a dor e o encantamento da alma humana?
 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MORETTO, F.L.M. Introdução. In ROUSSEAU, J.-J. Júlia ou A nova Heloísa. São Paulo: Hucitec, 1994.
 

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